Entenda o processo de desconstrução da fé

Todo mal tem um início. Não é diferente com as idéias que permeiam atualmente a sociedade ocidental. Que o diga o crítico social Russell Kirk.
Russell Amos Kirk (1918-1994) foi um notório jornalista cultural e cientista político norte-americano, conhecido pelo seu conser-vadorismo. Ele escreveu mais de 30 livros, tanto de ficção como de não-ficção, além de centenas de ensaios e resenhas. Foi colunista em vários periódicos nos Estados Unidos, fundador da revista de culturaModern Age e editor por 30 anos da revista The University Bookman, de resenhas de livros. Mas, sua maior obra só veio a lume em 1953, quando Kirk lançou um livro que se tornou clássico rapidamente nos EUA, sendo considerado hoje a melhor obra para entender tanto a formação e o desenvolvimento do conservadorismo na tradição anglo-americana como as raízes e o desenvolvimento do pensamento liberal no Ocidente. Estou falando de The Conservative Mind: from Burke to Eliot (O Conservadorismo: de Burke a Eliot).

Nesse livro, o crítico americano afirma que a onda liberal que hoje vemos no mundo (com a pregação a favor do aborto, da liberação das drogas e da promiscuidade sexual) nasceu no período histórico denominado “Idade da Razão”, especialmente no século 18. Kirk diz ainda que um dos primeiros a denunciar eloqüentemente os efeitos nefastos do liberalismo em sua gênese foi Edmund Burke (1729-1797), pensador e político britânico.
Segundo Kirk, antevendo o futuro, Burke criticou em sua época três escolas que chamou de “radicais” e que estavam tornando-se bastante populares em seus dias: (a) o racionalismo dos filósofos; (b) o nascente utilitarismo do filósofo e jurista inglês Jeremy Bentham; e (c) o sentimentalismo romântico do filósofo francês Rousseau. Esse último Burke chegou a chamar de “o Sócrates louco”. O detalhe é que, em sua análise, o político britânico identificou alguns pontos que caracterizaram a onda liberal daquela época, dando-lhe base. Entre eles estão:
1) A crença de que, se Deus existe, “difere radicalmente em sua natureza da idéia do Deus cristão; ele seria ou o ser remoto e impassível dos deístas ou o brumoso e recém-criado Deus de Rousseau”;
2) A idéia de que o homem, diferentemente do que a Bíblia diz, não é tendente ao pecado, mas é naturalmente bom, generoso e benevolente, sendo corrompido pelas instituições;
3) A convicção de que as tradições da humanidade e o ensino bíblico são mitos, confusos e ilusórios, e nos ensinam muito pouco;
4) A fé no ser humano, como sendo capaz de aprimorar-se sozinho e trazer a paz e a ordem ao mundo sem precisar de alguma ajuda divina;
5) O pensamento de que devemos buscar a “libertação das velhas crenças, dos tabus, dos juramentos e das velhas instituições”, e regozijarmo-nos com “a pura liberdade e a auto-satisfação”.
Como vemos, foi ali, no século 18, que a atual onda liberal teve seu início. Foi Jean Jacques Rousseau quem “decretou” a morte do pecado, ao pregar a teoria da plena bondade natural do ser humano. Depois dele, veio Augusto Comte, com o seu positivismo, afirmando que a religião é o estado primitivo da sociedade. O iluminismo proclamou que a religião não era mais relevante. Assim, chegamos ao ponto onde estamos hoje.

A sociedade está moralmente à deriva

Esses cinco pontos esposados por Edmund Burke e que apresentamos acima explicam, por exemplo, o porquê de a sociedade de hoje viver em um nível moral muito baixo. Já dizia Russell Kirk, em sua obra supracitada, que “problemas políticos e sociais são, no fundo, problemas religiosos e morais”. E ele não está errado. As questões sociais são, lá no fundo, uma questão de moral pessoal. Não é necessário um grande exercício mental para perceber isso.
Imagine uma sociedade onde as pessoas são governadas pela crença em uma ordem moral duradoura, por um forte sentido de certo e errado, por convicções pessoais sobre a justiça e a honra. Com certeza será uma sociedade sadia, que fugirá tanto do extremo da tirania quanto do extremo da anarquia.
Agora, imagine uma outra sociedade, onde as pessoas vivem moralmente sem rumo, ignorando o certo e o errado. Seria uma sociedade onde cada um estaria voltado para sua gratificação pessoal, atrás da satisfação de seus próprios apetites. Sem dúvida, seria uma sociedade doentia, tanto na sua versão mais radical (o anarquismo) quanto na sua versão liberal mais leve, que está sendo implementanda hoje em nossa sociedade.
Não é à toa que é bastante comum vermos os pensadores pós-modernos identificando a sociedade em que vivemos como inundada de patologias, crises e profundos vazios existenciais. À medida que o tempo passa, os valores morais vão perdendo seu significado e força, o que resulta em uma sociedade cada vez mais neurótica, hedonista, egoísta e violenta.
Um sintoma da crise em que vive o mundo é a atual produção artística no planeta. Sabemos que a produção artística de uma época diz muito sobre os problemas, angústias, medos, conquistas, sonhos e aspirações de uma geração. Ora, os livros de ficção, filmes, peças teatrais e pinturas de hoje estão repletos de personagens psicóticos ou figuras que não trazem substancialmente nada, só o vazio. Isso é porque a alma humana no século 21 encontra-se assim.
Outro dia um articulista carioca escreveu, em sua coluna em um dos jornais mais influentes do país, sobre sua profunda infelicidade existencial, chegando a afirmar que tinha inveja da lagartixa, que não aspira nada, a não ser a satisfação de seus instintos naturais. E não foram poucos os que se identificaram com ele!
Os perigos de uma sociedade assim é que, por não ter firmeza moral e sentido na existência, está aberta a qualquer bizarria. Está moralmente à deriva. O único conceito que consegue-se assimilar é o que diz: “Não se pode reprimir direitos”. Mas onde estão os deveres? Apesar de ainda existirem alguns deveres reconhecidos, até mesmo estes, vez por outra, são questionados por celebrizadas “mentes privilegiadas” de nossos dias. Isso porque, via de regra, o que prevalece no inconsciente coletivo da sociedade de hoje é a idéia de que o dever é visto como mal, “castrador”, destruidor, camisa-de-força. Por isso, os projetos de lei de hoje, em sua maioria, não buscam impor limites; pelo contrário, os retiram.
O cristão genuíno, porém, não sofre essas crises, pois uma vez que reconhece a Palavra de Deus como sua única regra de fé e prática, ele não relativiza, inverte ou esvazia valores. Ele se apóia e orienta-se em valores concretos, claros e absolutos das Sagradas Escrituras. Seu comportamento e pensamentos são pautados por ela, o que, em vez de inibir sua vocação e suas habilidades, as desenvolvem. Ele percebe limites e, por isso, compreende a existência como um todo e, em particular, a sua missão na vida. Isso porque sem limites é impossível andar com segurança ou mesmo entender a existência. Limites são uma necessidade da própria existência. Eles foram criados por Deus para o melhor aproveitamento da vida. Desrespeitá-los é ser infeliz ou infelicitar o próximo.
A sociedade de hoje precisa de valores. Isso significa limites, mas também sentido, caminho. Em outras palavras, o mundo necessita mais do que o retorno aos valores ou princípios judaico-cristãos. Precisa da Palavra de Deus. O mundo precisa de Cristo.
Identificamo-nos com a luta de todo grupo conservador em favor da preservação dos valores que têm seu apoio nas Sagradas Escrituras, porém nossa luta é muito maior. Não é só mourejar pela manutenção dos imprescindíveis valores sociais herdados pela formação judaico-cristã da sociedade ocidental. São também, e precipuamente, a pregação e a defesa dos princípios da Palavra de Deus, da Verdade do Evangelho. Essa é a nossa missão.


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