Jesus nasceu em Belém da Judeia, cumprindo assim a profecia de Miqueias, entretanto, foi criado em Nazaré e fixou residência em Cafarnaum, ambas cidades da Galileia. Iniciou o seu ministério em Caná da Galileia e encerrou em um certo monte da Galileia. Mais da metade do seu ministério foi desenvolvido na Galileia e dos seus doze discípulos, onze eram daquela região. O único da Judeia era Judas, aquele que o traiu, cujo sobrenome, “Iscariotes”, significa “homem de Keriote”, uma pequena cidade ao sul de Hebrom. Seria isto uma mera coincidência? Seria por falta de opção ou porque as famílias de José e Maria eram dali?
Nos tempos do Novo Testamento, Israel era dividido em três regiões principais. No centro estava Samaria, habitada por um povo miscigenado (de raça mista) e sincretista (de religião misturada), odiado pelos judeus. No sul estava a Judeia, região nobre, onde ficava o templo, o sinédrio, os principais mestres da lei, as melhores faculdades, as pessoas mais ricas e influentes. Ali estava Jerusalém, onde aconteciam as concorridas festas judaicas, e outras influentes cidades como Jericó, Hebrom e Cesareia. No norte estava a Galileia, região dos pobres, iletrados, menos privilegiados, simples pescadores, trabalhadores braçais, gente desprezada e menosprezada, marginalizada e motivo de chacota para os importantes habitantes do sul. É por isto que quando alguém mencionou que Jesus era da Galileia os líderes religiosos logo retrucaram: “Da Galileia não se levanta profeta”. Natanael também questionou: “De Nazaré pode sair alguma coisa boa?” (Jo 1.46)
David Bosch, o conhecido missiólogo sul-africano, chama-nos a atenção para a ênfase dada por Lucas ao ministério de Jesus entre os carentes. Para ele, o paradigma missionário de Lucas é “a prática de perdão e a solidariedade com os pobres”. Em Lucas 4.18-19 Jesus se levanta em uma sinagoga da Galileia e proclama em alto e bom tom: “O Espírito do Senhor está sobre mim, pelo que me ungiu para evangelizar os pobres; enviou-me para proclamar libertação aos cativos e restauração da vista aos cegos, para pôr em liberdade os oprimidos, e apregoar o ano aceitável do Senhor” (LC 4.18). Observe as classes que Ele cita: pobres, cativos, cegos e oprimidos. O Mestre
da Galileia estava citando Isaías 61.1-2 e parte do 58.6. O “ano aceitável do Senhor” neste texto refere-se ao “ano do jubileu”, de Levítico 25. Tratava-se de uma lei estipulada por Deus, que contemplava principalmente os pobres de Israel. Era observada a cada quarenta e nove anos, quando três coisas aconteciam: 1) todos os escravos judeus eram libertos; 2) todas as dívidas eram perdoadas; e 3) toda a terra descansava da semeadura naquele ano. Cristo estava dizendo que o seu ministério contemplava de forma especial os carentes.
Creio, portanto, que a dedicação de Jesus aos carentes da Galileia não foi por acaso. Como escreveu o missiólogo equatoriano René Padilla, ele fez opção pela Galileia. Viveu ali deliberadamente. O porto-riquenho Orlando Costas, considerado o primeiro missiólogo latino-americano, chama Jesus de o “evangelista da periferia”. Mas, às vezes, o Cristo que pregamos parece mais um alto executivo metropolitano do que “um homem de dores e experimentado no sofrimento”. Até que ponto temos seguido o seu exemplo dele?
Numa tentativa de nos aproximarmos mais do exemplo de Cristo, creio que devemos reconsiderar alguns pontos da nossa prática missionária. Como prática missionária, refiro-me a toda ação da igreja em função da expansão do reino de Deus, seja através de um missionário de carreira no outro lado do mundo ou através de um recém-convertido do outro lado da rua.
Nossa ação missionária deve visar vidas, e não apenas almas. Um evangelho que prepara as pessoas para morar no céu, mas não lhes dá diretrizes para viver de forma digna aqui na terra, está no mínimo truncado. Um evangelho integral visa a necessidade de redenção espiritual do homem, mas também os seus anseios existenciais. O seu comportamento moral, mas também a sua estrutura emocional. Os seus conceitos religiosos, mas também seus valores familiares. A sua vida na igreja, mas também no trabalho. Sua vida na família, mas também na sociedade. Um evangelho integral visa o homem na sua integralidade e não apenas na sua espiritualidade.
Nossa ação missionária deve visar também o social, e não apenas o eclesiástico. Evangelização não exclui ação social e vise-versa. Nosso trabalho social não é apenas um meio para a evangelização, mas uma parte integral da expansão do reino. Um evangelho integral toca o céu, mas também a terra; o espírito, mas também o corpo. Contempla a fome pela Palavra, mas também a fome pelo pão; a doença espiritual, mas também a doença física; a educação cristã, mas também a educação secular. Além de denunciar o pecado moral, devemos denunciar, de forma profética, o pecado sociopolítico, como a corrupção e a injustiça social. Devemos lutar pelo cumprimento das leis legítimas e pela substituição das espúrias. Nosso envolvimento com a sociedade não deve ser seletivo, pelo qual evitamos certos problemas enfrentados pela mesma, por não serem “espirituais”. O império das trevas está entremeado nas estruturas sociais e, por isso, os valores do reino de Deus devem confrontar de forma libertadora estas estruturas.
Nossa ação missionária deve visar o planeta e não apenas o homem. Uma abordagem integral envolve também a conscientização por questões como ecossistema. O que nasce de novo tem a consciência transformada. Quem matava não mata mais, quem roubava não rouba mais e quem adulterava se torna fiel ao seu cônjuge. Quem poluía as águas, não deveria poluir mais. Quem jogava o seu lixo na rua, não deveria jogar mais. Quem poluía a atmosfera, não deveria poluir mais. E até o indígena que desmatava a floresta de forma desordeira, não mais deveria desmatar.
Nossa ação missionária deve dar respostas socioculturais e não apenas impor proibições. Onde quer que ministremos, seremos confrontados por questões delicadas. Em sociedades pós-modernas enfrentaremos questões como homossexualismo, aborto, sexo livre, relações extraconjugais tidas como normais, sonegação de impostos, drogas e conflitos políticos. Em sociedades tradicionais, como no mundo islâmico, questões como direito à vingança, machismo e legalismo. Em sociedades tribais, questões como poligamia, desvalorização da mulher e guerras tribais. Numa abordagem missionária, questões como estas não podem ser ignoradas e muito menos subestimadas. Ou seja, não podemos fazer de conta que não existem, ou que o povo as resolverão com naturalidade, nem podemos simplesmente impor proibições. Precisamos dar respostas bíblicas relevantes, que façam sentido para o povo. Isto também faz parte da missão integral, que não aborda apenas o religioso, mas também o cultural.
Para a nossa missiologia ser relevante neste século, não poderemos fazer vista grossa a questões como a má distribuição de renda, menores em risco, dependentes químicos, pessoas acometidas de doenças como aids e câncer, prisioneiros, órfãos e analfabetos. Não poderemos ignorar os sertões nordestinos, as favelas dos grandes centros urbanos e os grupos indígenas.
Estamos vivendo no Brasil um tempo de despertamento missionário. Nas palavras do missiólogo brasileiro Manfred Grellert, estamos no “avivamento tupiniquim”. Louvado seja o Senhor pela crescente consciência e envolvimento social das nossas igrejas. Muito já foi e tem sido feito nesta área. Mas ainda tem muito a ser feito e podemos fazer muito mais. Somos uma igreja forte, temos um contingente missionário atuante e servimos a um Deus que possui todo poder. Creio que fomos chamados, como igreja brasileira, para impactar toda esta geração com um evangelho integral, que contempla o homem na sua integralidade. Qual será a sua participação?
Cácio Silva é pastor presbiteriano e missionário da Missão AMEM/Projeto Amanajé, juntamente com sua esposa Elisângela, entre indígenas na Amazônia
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