Pais não puderam se defender. Para juiz, se trata de uma quadrilha que atua para traficar crianças pobres no sertão da Bahia de forma planejada, profissional e habitual.
Uma família pobre tem os cinco filhos tirados de casa e entregues para a adoção. Tudo feito em tempo recorde, de um dia para o outro, e sem que os pais pudessem se defender. Mas na vizinhança e na escolinha da cidade, todos garantem que as crianças eram bem tratadas. A Justiça quer saber agora o que está por trás dessa história.
O cenário é a cidade de Monte Santo, no sertão da Bahia.
Silvânia Maria da Silva e Gerôncio de Brito Souza viviam assim. Ele, vendendo o dia de serviço pesado na enxada para não deixar faltar comida em casa.
“Todos os filhos meus que nasceram foi festa. Festa, caixa de foguete, galinha, carne assada, calabresa, tudo”, lembra ele.
Ela, cuidando da casa. “O pai dava atenção. Quando eu botei na escola, Gerôncio vinha buscar. Vinha às reuniões. Sempre comparecendo às reuniões”, conta ela.
Gerôncio e Silvânia estão separados, mas o apego aos filhos sempre foi reconhecido na vizinhança.
“Não tinha um dia que eles não viessem aqui na casa do pai. Não tinha um dia. Quando era assim, eles iam para a escola. Quando era meio-dia, chegava, corriam. Ele dava banho, botava perfume nos meninos”, detalha a vizinha Catarina da Mota Silva.
Os quatro avós também ajudavam, mas no dia 13 de maio do ano passado a história dessa família começou a mudar. A caçula, de 2 meses de idade, única menina dos cinco filhos, foi a primeira a ser levada, por ordem da Justiça de Monte Santo. Duas semanas depois, o sofrimento aumentou.
“Estava em casa, estava até lavando as roupas deles, de repente chegou esse carro. Eu pensei que era para trazer minha menina de volta”, relata Silvânia, emocionada.
Eram dois policiais e uma escrivã para cumprir nova ordem do juiz: levar os outros quatro meninos.
“O Ricardo correu lá por dentro, correu para a casa da mãe, lá ‘pra riba’”, conta a avó paterna, Maria Brito Souza.
“Meu filho mais velho chegou: 'mãe, me esconda. Me esconda que eu não quero ir, não'”, conta a mãe aos prantos.
“A rua toda ficou chocada naquela noite. Foi uma noite de terror”, reforça a avó.
“Ainda hoje eu não gosto de lembrar. Ainda hoje tenho sentimento por isso”, diz a vizinha.
“Os policiais disseram que, se nós impedíssemos, nós iríamos presos. Eu mais o pai. Que era ordem do juiz”, diz a mãe.
Os filhos de Gerôncio e Silvânia foram dados para quatro casais de São Paulo. Foi tudo feito com muita rapidez no fórum de Monte Santo. As famílias paulistas chegaram em um dia, foram ouvidas pelo juiz e, no dia seguinte, voltaram para São Paulo levando, com elas, as crianças. Os pais biológicos e a promotoria de Justiça não estavam na audiência. Por lei, sem a presença deles, o processo de adoção não pode sequer ser iniciado.
O juiz Vítor Manoel Xavier Bizerra, que assinou a guarda provisória das crianças, trabalha hoje na cidade de Barra. O Fantástico foi até lá. Esteve na casa onde ele mora e duas vezes no fórum. Nada do juiz. A equipe deixou um recado com a escrivã.
Fantástico: Você falou para ele que nós estávamos procurando ele? Que gostaríamos de conversar?
Magda Silvana Guedes (escrivã): Falei. Eu disse a ele que vocês vieram aqui com a proposta de entrevistá-lo.
Para retirar as crianças de Monte Santo, o juiz se baseou em relatórios que se contradizem. O conselho tutelar do município não encontrou irregularidades quando visitou a casa de Silvânia. Mas a assistente social da prefeitura registrou que os meninos em idade escolar faltavam às aulas. O Fantástico foi à escola onde eles estavam matriculados.
Fantástico: Os pais nunca deixaram de trazer?
Vanessa da Silva Souza (diretora da escola): Não. Eu nunca soube.
Fantástico: E vinham buscar direitinho?
Diretora: Eles sempre vinham buscar. Gerôncio, quando não vinha, era ela.
“Crianças quando são mal tratadas, geralmente têm mau comportamento. De agressividade, de viver chorando. E eles não aparentavam nada disso, não chegavam machucados, de jeito nenhum, porque eles eram bem cuidados”, aponta a diretora.
Desesperado, Gerôncio procurava o conselho tutelar para saber do paradeiro dos filhos. Nunca conseguiu uma notícia e acabou desacatando as conselheiras. Foi preso e passou três semanas na cadeia. Os pais dele tiveram que vender a casa para pagar a fiança de R$ 5 mil. Hoje moram de favor.
Fantástico: Eram muito apegados à senhora, os seus netos?
Avô: Mandava comprar pão, ele ia, o bichinho. Não gosto nem de me lembrar, viu?
Avó: Gosto muito deles.
Os quatro avós conviviam com as crianças, mas nenhum deles foi ouvido no processo.
“Tenho foto de todos eles no meu álbum”, afirma, emocionada, a avó materna, Perpétua Maria da Mota.
Carmem Topschall aparece em todos os processos como intermediária das adoções. Ela teria sido a pessoa que aproximou os casais paulistas das crianças de Monte Santo.
O Fantástico descobriu que Carmem mora em um sobrado em Pojuca, a 350 quilômetros de Monte Santo.
Fantástico: Um assunto particular. Preferia conversar aqui mesmo?
Carmem: Ah, não. Particular, vamos subir então.
Carmem tem três filhos adotados. Ela confirma que ajudou as famílias de São Paulo, mas nega que trabalhe conseguindo crianças pobres para casais que queiram adotar.
Carmem: Eu não fui intermediária.
Fantástico: Como que não foi se a senhora aparece no processo?
Carmem: Eu apareço no processo porque eu acompanhei o pessoal e levei e mostrei o caminho, mas eu não fui intermediária.
Já faz um ano e quatro meses.
O pai afirma que as crianças fazem falta, enquanto segura, emocionado, a roupa dos filhos. A mãe conta que nunca mais teve notícia delas.
Campinas, São Paulo. A equipe do Fantástico vai procurar os casais que, de acordo com os processos, conseguiram a guarda provisória das crianças. Dois dos cinco filhos de Silvânia e Gerôncio moram em uma casa. São os dois mais velhos. Segundo os vizinhos, a casa está sempre vazia. Partem para Indaiatuba, vizinha a Campinas. Lá, ficam os outros endereços das crianças.
O Fantástico toca o interfone e avisa que quer falar sobre uma criança adotada, mas desligam o telefone.
Em outra casa, ninguém atende. Mas a advogada que defende os interesses dos casais que estão com as crianças é encontrada.
“Houve o devido processo legal. Ninguém fez nada que não fosse pelo devido processo legal”, garante Lenora Steffen Panzetti.
O atual juiz de Monte Santo, Luiz Roberto Cappio, discorda, e ele tem uma lista de irregularidades que encontrou nos processos.
“Não houve determinação de estágio de convivência. Os pais biológicos não foram ouvidos”, diz ele.
Para ele, o caso dos filhos de Silvânia e Gerôncio é só um exemplo do que acontece em várias comunidades do sertão da Bahia.
Fantástico: Se trata de uma quadrilha que atua para traficar crianças pobres aqui no sertão da Bahia?
Juiz: Sim. De forma planejada e profissional, habitual.
A volta das crianças para Monte Santo é uma possibilidade que o juiz não descarta.
“Se eu entender que o retorno atende ao melhor interesse dessas crianças, eu farei”, declara o juiz.
“Mas essas crianças já passaram por um trauma da vida que elas levavam, da adaptação que elas tiveram e tirá-las novamente, será que realmente é o melhor para elas?”, questiona Lenora.
“Estou esperado por eles aqui”, diz a mãe, esperançosa.
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