Os liberais sempre estiveram certos. Há mitos na Bíblia. Mitos eram abundantes no mundo religioso do antigo Oriente ao redor de Israel, bem como nas religiões à época da igreja apostólica do século I. Por conseguinte, os escritores bíblicos registraram vários deles em suas obras.
No Antigo Testamento encontramos vários desses mitos. Há a crença dos cananeus de que existiam deuses chamados Astarote, Renfã, Dagom, Adrameleque, Nibaz, Asima, Nergal, Tartaque, Milcom, Astarote, Renfã e Baal. Sobre esse último, há o mito de que podia responder com fogo ao ser invocado por seus sacerdotes.
Há também o mito egípcio de que o Nilo, o sol, e o próprio Faraó, eram divinos, o mito filisteu do deus-peixe Dagom e que o Deus de Israel precisava de uma oferta de hemorróidas e ratos de ouro para ser apaziguado. Para não falar do mito cananeu da Rainha dos Céus que exigia incenso e libações (bolos) dos adoradores (Jeremias 44.17-25). Um outro mito na Bíblia é que o sol, a lua e as estrelas eram deuses, mito esse que sempre foi popular entre os judeus e radicalmente combatido pelos profetas (2Reis 23.5,11; Ezequiel 8.16). O mito pagão de monstros e serpentes marinhas é mencionado por Jó, Salmos e Isaías, em contextos de luta contra o Deus de Israel, em que eles representam os poderes do mal, os povos inimigos de Israel (Jó 26.10-13; Sl 74.13-17; Is 27.1). A lista é enorme. Há muitos mitos desse tipo espalhados pelos livros do Antigo Testamento.
Os profetas, apóstolos e autores bíblicos se esforçaram por mostrar ao povo de Deus que os mitos eram conceitos humanos. Esforçaram-se por chamá-lo a se submeter à revelação do Deus que se manifestou poderosa e sobrenaturalmente na história. Eles sempre souberam a diferença entre os mitos e os atos salvadores de Deus na história. Por conseguinte, sempre estiveram empenhados em separar mitologia de história real e invenções humanas da revelação de divina. Foram os prioneiros da desmitologização. Elias desmitologizou Baal no alto do Carmelo. Moisés também desmitologizou o Nilo, o sol, e o próprio Faraó, provando pelas pragas que caíram sobre eles que a divindade deles era só mito mesmo. E quando ele queimou o bezerro de ouro e o reduziu a cinzas, desmitologizou a idéia de que foi o bovino dourado quem tirou o povo de Israel do Egito. O próprio Deus se encarregou de desmitologizar Dagom, deus-peixe dos filisteus, quando a imagem de Dagom caiu de bruços diante da Arca do Senhor e teve a cabeça cortada (1Sm 5.2-7).
No Novo Testamento, o apóstolo Paulo se refere por quatro vezes aos mythoi (grego). De acordo com o apóstolo, mitos são estórias profanas inventadas por velhas caducas (1Tim 4.7), que promovem controvérsias em vez da edificação do povo de Deus na fé (1Tm 1.4). Entre os próprios judeus havia muitas dessas fábulas, histórias fantasiosas (Tito 1.14). E já que as pessoas preferem os mitos à verdade (2Tm 4.4), Timóteo e Tito, a quem Paulo escreveu essas passagens, deveriam adverti-las contra os mitos. A advertência era necessária, pois os cristãos das igrejas sob a responsabilidade deles vinham de uma cultura permeada por mitos.
O próprio Paulo se deparou várias vezes com esses mitos. Uma delas foi em Listra, quando a multidão o confundiu, juntamente com Silas, com os deuses do Olimpo e queria sacrificar-lhes (At 14.11). Outra vez foi em Éfeso, quando teve de enfrentar o mito local de que uma estátua da deusa Diana havia caído do céu, da parte de Júpiter, o chefe dos deuses (At 19.35). Em todas essas ocasiões, Paulo procurou afastar as pessoas dos mitos e trazê-las para a fé na ressurreição de Jesus Cristo. Quando Paulo escreveu aos romanos, um povo imerso em mitos religiosos, descreveu no capítulo primeiro de sua carta a origem das religiões humanas. Elas são criações humanas, oriundas da recusa do homem em aceitar a verdade de Deus. Ao rejeitar a revelação de Deus, os homens inventaram para si deuses e histórias sobre esses deuses, que são os mitos das religiões pagãs (Romanos 1.17—32).
O apóstolo Pedro também estava perfeitamente consciente do que era um mito. Quando ele escreve aos seus leitores acerca da transfiguração e da ressurreição de Jesus Cristo, faz a cuidadosa distinção entre esses fatos que ele testificou pessoalmente e mythoi, “fábulas engenhosamente inventadas” (2Pe 1.16). Ele sabia que a história da ressurreição poderia ser confundida com um mito, algo inventado por ele mesmo ou pelos demais discípulos de Jesus [esse argumento permanece de pé, ainda que alguns neguem que Pedro seja o autor dessa carta]. Ao que parece, Paulo e Pedro, juntamente com os profetas e autores do Antigo Testamento, estavam perfeitamente conscientes da diferença entre uma história real e outra inventada.
Dizer que os próprios autores bíblicos criaram mitos significa dizer que eles sabiam que estavam mentindo e enganando o povo com estórias espertamente inventadas por eles. Seus escritos mostram claramente que eles estavam conscientes da diferença entre uma história inventada e fatos reais. Através da história, os cristãos têm considerado o mito como algo a ser suplantado pela fé na revelação bíblica, que registra os poderosos atos de Deus na história. Equiparar as narrativas bíblicas aos mitos pagãos é validar a mentira e a falsidade em nome de Deus. É adotar uma mentalidade pagã e não cristã.
Existe, naturalmente, uma diferença entre o mito e os contos que aparecem na Bíblia. Há várias histórias na Bíblia, criadas pelos autores bíblicos, que claramente nunca aconteceram. Contudo, elas nunca são apresentadas como história real, como fatos reais sobre os quais o povo de Deus deveria colocar sua fé, mas como comparações visando ilustrar determinados pontos de fé, ou linguagem figurada. São as parábolas, os contos, como aquela história do espinheiro falante contada por Jotão (Jz 9.7). Há também a poesia, onde se diz que as estrelas cantam de júbilo, que Deus cavalga querubins e viaja nas asas do vento. Os Salmos contém muito disso. Quando os neoliberais deixam de reconhecer a diferença entre mitos e gêneros literários que usam licença poética e linguagem figurada, fazem uma grande confusão.
Eu disse que a atitude dos profetas, apóstolos e autores bíblicos em relação ao mito foi dedesmitologização. Eu sei que dizer isso é anacrônico, pois foi somente no século passado que Rudolph Bultmann, autor do clássico Jesus Cristo e Mitologia, propôs seu famoso programa de desmitologização da Bíblia. Ele achava que havia mitos na Bíblia e que era preciso separá-los da verdade. Mas, antes dele, os próprios profetas, apóstolos e autores bíblicos já haviam manifestado essa preocupação. É claro que eles e Bultmann tinham conceitos diferentes. Mas, se ao final o mito é uma história de caráter religioso que não tem fundamentos na realidade, e que se destina a transmitir um conceito religioso, ele não é, de forma alguma, uma preocupação exclusiva de teólogos modernos. Ou seja, o programa de desmitologização começou muito antes de Bultmann, desde quando a Bíblia faz a separação entre mito e os atos salvadores de Deus na história e nos convida a crer nesses últimos de todo coração.
Augustus Nicodemus Lopes é mestre e doutor em Interpretação Bíblica e chanceler da Universidade Presbiteriana Mackenzie e um dos autores do blog O Tempora, O Mores! do qual este texto foi reproduzido com permissão.
[Como sempre, o texto foi lido e revisado por vários colegas a quem agradeço]
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