Lição 2 – O Propósito da Tentação

O propósito da tentação - Silas Daniel - Por estar escrevendo “às doze tribos que andam dispersas” (Tg 1.1), isto é, provavelmente aos cristãos judeus que se encontravam espalhados entre as nações devido à primeira onda de perseguição ao Cristianismo no início da Igreja Primitiva (At 8.1; 11.19), o primeiro assunto que o bispo de Jerusalém trata em sua epístola é justamente a provação.
Mais especificamente, ao dirigir-se a seu rebanho disperso, o apóstolo Tiago demonstra sua preocupação com a necessidade de esses cristãos entenderem corretamente o propósito das aflições pelas quais estavam passando bem como o posicionamento que deveriam ter diante dessas terríveis intempéries. E ao fazê-lo, ele apresenta, resumidamente,

o significado da provação na vida dos filhos de Deus.

Neste capítulo, abordaremos esse tema da provação à luz dos versículos 2 a 4 e 12 a 15 do primeiro capítulo da Epístola de Tiago, porque eles tratam mais diretamente sobre esse assunto. Entretanto, os versículos intermediários, isto é, aqueles que se encontram entre esses dois blocos de versículos, serão também e eventualmente citados quando for necessário para melhor compreensão do assunto. Comecemos, então, pela análise dos versículos de 2 a 4.

O propósito da provação na vida do cristão

A afirmação que abre esse primeiro bloco de versículos sobre

0 tema na Epístola de Tiago expressa contundentemente algumas verdades sobre as provações um tanto esquecidas hoje em dia por muitos cristãos. Declara Tiago: “Meus irmãos, tende grande gozo quando cairdes em várias tentações” (Tg 1.2). Só esse versículo já seria suficiente para jogar por terra, por exemplo, todos os pressupostos da Teologia da Prosperidade e da Confissão Positiva. Antes, porém, de mergulharmos nas verdades nele contidas, é preciso entender corretamente o que Tiago quer dizer quando fala de “tentações” aqui.

O vocábulo que aparece no original grego dessa passagem para “tentações” é Peirasmos, que significa literalmente “prova”, “provação” ou “teste”.1 O termo “sugere uma situação difícil, uma pressão dolorosa”,2 daí algumas versões do texto sagrado preferirem a tradução “tentações”, que traz a ideia de “teste”, enquanto outras — a maioria — preferem a tradução “provações”, que traz a ideia de uma situação aflitiva. Na verdade, as duas traduções estão corretas, uma vez que Peirasmos é utilizado nessa passagem em alusão às aflições decorrentes de perseguições sofridas pelos crentes por causa da sua fé (Tg 1.3) e tais adversi- dades são também tentações, porque elas testam a fidelidade dos cristãos a seu Senhor. Aliás, aflições, de forma geral, funcionam quase sempre também como tentações. Ou seja, Peirasmos descreve perfeitamente a situação dos cristãos judeus dispersos pelo Império Romano: eles estavam tendo a sua fidelidade ao evangelho provada pela fornalha da perseguição.

Esclarecido isso, vamos agora às lições extraordinárias que essa declaração inicial de Tiago nos traz.

Em primeiro lugar, essa afirmação do apóstolo implica que o cristão, o servo de Deus, o filho de Deus, aquele que ama e serve ao Senhor, passa, sim, por dificuldades. Tiago se dirige aos seus leitores não como falsos crentes, mas como “irmãos” em Cristo, e conta-nos que esses irmãos, apesar da sua fé e principalmente por causa da sua fé, estão passando por “várias provações”, não por poucas. Isso se coaduna com o que Jesus já havia dito a seus discípulos, que no mundo teríamos aflições (Jo 16.33), e com o que o salmista Davi asseverou em Salmos 34.19, que o “justo” sofre “muitas aflições”. Então, é absolutamente falsa a crença de que todas as provações na vida de uma pessoa são resposta direta a algum pecado na vida dela. Santos, justos, irmãos em Cristo, também passam por dificuldades pelo simples fato de estarem neste mundo.

Em segundo lugar, diferentemente do que a maioria esmagadora dos seres humanos faz diante das aflições, a afirmação de Tiago deixa claro que devemos reagir a elas com alegria e não com desolação. O problema é que, infelizmente, como declara Lawrence Richards, “a última coisa que fazemos normalmente, quando vêm as tentações, é alegrar-nos”. Aliás, a primeira pergunta que o homem natural faria diante de uma declaração como a de Tiago seria, como também frisa Richards: “Nós podemos compreender porque os cristãos de Jerusalém, forçados a deixar seus lares e fugir para terras estrangeiras, enfrentariam ‘várias tentações’, mas teriam ‘grande gozo’?”.3

O célebre teólogo puritano Matthew Henry ressalta brilhantemente a razão mais óbvia para essa reação do cristão, e que também está subentendida nas palavras de Tiago. Frisa Henry: “Não devemos afundar numa disposição mental triste e desconsolada, que nos faria desfalecer nas provações, mas precisamos nos empenhar em manter o nosso espírito elevado e firme para melhor discernir a nossa situação; e para maior vantagem nossa, devemos empenhar-nos em fazer o melhor dela”.4 Ou seja, qualquer pessoa que reage com desânimo completo diante das provações está se rendendo a elas e, portanto, já está derrotado; logo, se queremos vencê-las, temos que enfrentá-las com disposição de ânimo, não com abatimento de alma.

Entretanto, mesmo após essa explicação mais óbvia para a reação do cristão frente às adversidades, ainda há uma indagação que incomoda aquele que não é cristão: “E até compreensível tentar manter-se calmo ou com um espírito elevado em meio à tempestade, mas alegrar-se grandemente diante dela?”. É por isso que Matthew Henry acrescenta em seguida: “A filosofia pode instruir os homens a permanecerem calmos em suas dificuldades, mas o Cristianismo lhes ensina [algo mais:] a serem alegres”.5

Sim, os cristãos podem ter “grande alegria” em meio às aflições. Mas, como isso é possível? Como o Cristianismo ensina o cristão a se alegrar em meio às dificuldades? A explicação de Tiago está nos versículos 3 e 4: o entendimento do propósito das provações leva o crente a ver as suas adversidades como oportunidades para seu crescimento, amadurecimento e fortalecimento espirituais.

Tiago diz que o cristão tem “grande gozo” quando se vê mergulhado em “várias provações” porque ele sabe (“sabendo”, v.3) “que a prova da vossa fé produz a paciência” (v.3). O vocábulo grego traduzido aqui como “paciência” é Hupomone, que significa literalmente “permanência em baixo de”, “ficar em baixo de”, trazendo a ideia de “tolerância”, “resignação”, “persistência”, “perseverança”.6 Não por acaso, a maioria das versões da Bíblia traduz esse vocábulo nessa passagem como “perseverança”. Ou seja, o que Tiago está dizendo nesse texto é que uma vez confirmada a nossa fé em meio às provações, esta é fortalecida, porque o resultado da provação é a paciência ou a perseverança. São nas provações que aprendemos a perseverança, que é a capacidade de mantermo-nos firmes mesmo quando tudo está dando errado, mesmo quando tudo parece estar conspirando contra nós. Não se engane: ninguém aprende a perseverar, ninguém cresce e amadurece na fé, sem passar por provações.

Alguns cristãos são mais provados do que outros, mas todos são provados de alguma forma, porque são as provas que exercitam a nossa fé. Essa é a razão pela qual Deus permite provações na vida dos seus filhos. Como dizia A. W. Tozer, “Deus não mima os seus filhos”, por isso as provações na vida do cristão. Quando mimamos nossos filhos, eles se estragam, eles crescem com um caráter defeituoso. E a disciplina que aperfeiçoa o caráter da criança, como Salomão enfatiza inúmeras vezes no Livro de Provérbios. Da mesma forma, são as provações que aperfeiçoam a fé e o caráter cristãos.

Como assevera o apóstolo Pedro: “agora importa, sendo necessário, que estejais por um pouco contristados com várias tentações [Peirasmos], para que a prova da vossa fé, muito mais preciosa que o ouro que perece e é provado pelo fogo, se ache em louvor, e honra, e glória na revelação de Jesus Cristo” (1 Pe 1.6,7).

A importância de não esmorecer nas provações e da sabedoria para o completo crescimento espiritual

É interessante notar que Tiago estava preocupado não apenas em seus leitores entenderem o propósito das provações, mas também em ajudá-los a cumprirem esse propósito. Isso porque, no versículo 4, ele afirma: “Tenha, porém, a paciência a sua obra perfeita, para que sejais perfeitos e completos, sem faltar em coisa alguma”. Ou seja, ele estava dizendo a seus leitores: “A obra da perseverança deve ser completada em suas vidas para que vocês sejam realmente aperfeiçoados, maduros, fortalecidos na fé”. Isto é, não basta entender o propósito das provações; é preciso enfrentar até o fim esse processo, não parar no meio do caminho, para finalmente se chegar ao resultado desejado.

Mas, e se depois desse processo o cristão ainda sentir que está lhe faltando alguma coisa? Nos versículos 5 a 8, Tiago responde a essa questão que eventualmente um de seus leitores poderia fazer. Ele diz aos cristãos judeus dispersos que para garantir que o crescimento espiritual deles seja completo, além de não esmorecerem em meio às provações, eles devem também, caso sintam necessidade, pedir sabedoria a Deus. E aqui Tiago estava confrontando uma antiga corrente da tradição judaica sobre a sabedoria, que afirmava que toda sabedoria que precisamos seria alcançada apenas por meio das provações. Ao contrário dessa crença, diz Tiago aos seus irmãos em Cristo que se “a paciência” tiver “a sua obra completa” em suas vidas e, mesmo assim, eles sentirem que ainda lhes falta alguma coisa, que não têm ainda toda a sabedoria almejada, devem, então, pedi-la a Deus: “E, se algum de vós tem falta de sabedoria, peça-a a Deus, que a todos dá liberalmente e não o lança em rosto; e ser-lhe-á dada” (v.5).

Finalmente, consideremos ainda os versículos 9 a 11 do capítulo primeiro de Tiago, porque eles são uma continuação do raciocínio do apóstolo sobre como as provações podem ser transformadas em motivo de grande alegria para o crente em Cristo (apesar de esses versículos, isoladamente, também trazerem outras lições específicas que serão analisadas no capítulo 4 deste livro). Nos versículos de 9 a 11, Tiago fala que assim como o cristão pobre deve alegrar-se em sua melhora de vida (v.9), o cristão rico também deve alegrar-se nas circunstâncias difíceis (v. 10a), porque as riquezas terrenas são passageiras, transitórias, não devemos nos apegar a elas (w. 10b-11).

Ou seja, à luz dos versículos anteriores, o que o apóstolo Tiago está afirmando nesses versículos é, em síntese, que o cristão deve aceitar as ordens da providência divina com gratidão.

Portanto, o cristão transforma a sua provação em grande alegria quando ele reconhece na provação uma oportunidade para amadurecer e fortalecer-se na fé (w.2-4); quando ele se aproxima de Deus em oração, pedindo-lhe sabedoria (w.5-8); e quando ele aceita com gratidão a soberania e a providência divinas em todas as circunstâncias de sua vida (w.9-11), sabendo que Deus está no controle de tudo e Ele sabe o que faz e o que é melhor para a sua vida (Rm 8.28; 12.2). Mas, não termina aí. Ainda há um quarto ponto, que se encontra no versículo 12, e sobre o qual falarei ao final deste capítulo.

A origem das tentações

No segundo bloco de versículos sobre provações (Tg 1.12- 15 — o vocábulo grego para tentações nessa passagem é Peiras- mos também), Tiago é claro quanto à origem das tentações. Ele declara que elas não provêm de Deus (v. 13) e também não faz nenhuma referência a elas procederem diretamente do Diabo ou do mundo. O apóstolo assevera que a tentação tem a sua origem, na verdade, no próprio ser humano, em sua natureza pecaminosa (w. 14,15). Ou seja, o mundo e o Diabo são apenas agentes indutores externos da tentação.

Como afirma o teólogo Millard J. Erickson, a Bíblia enfatiza que o problema do pecado “está no fato de que os homens são pecadores por natureza. [...] Muitas vezes, a tentação envolve indução externa, [...] porém, o pecado é uma escolha da pessoa que o comete. O desejo de fazer o que se faz pode estar presente de forma natural e também pode haver indução externa, mas o indivíduo é basicamente responsável”.7 Como o próprio Jesus afirmou, o pecado não vem de fora para dentro; ele está dentro de nós, é resultado de nossa natureza (Mc 7.15). O que vem de fora são apenas estímulos para que o pecado se manifeste dentro de nós.

Entendido isso, percebemos que as tentações, na verdade, não exercem alguma força sobre a pessoa para fazê-la cair, mas apenas revelam a natureza interior da pessoa e a verdadeira qualidade de sua fé. Basta lembrar que se não houvesse natureza pecaminosa, nenhuma tentação seria de fato tentação. O que torna a tentação de fato uma tentação é porque temos uma natureza pecaminosa. Como bem explica Tiago, “cada um é tentado quando atraído e engodado pela sua própria concupiscência” (v. 14).

Finalmente, é importante frisar ainda que ser tentado não é pecado; pecado é ceder à tentação. E, inclusive, ser provado é, como afirma Tiago, motivo de contentamento do cristão, porque se ele não buscou aquela dificuldade, mas foi confrontado por ela, ele sabe que essa situação poderá se transformar em uma oportunidade para o seu crescimento; ele poderá suportar e vencer essa provação pela graça de Deus, fortalecendo-se no Senhor e na força do seu poder (Ef 6.10), vencendo no dia mal (Ef 6.13) e crescendo na fé (1 Pe 1.6,7).

O prêmio eterno para quem sofre e vence as tentações

O prêmio eterno do cristão que sofre e vence as provações já está garantido: “Bem-aventurado o varão que sofre a tentação; porque, quando for provado, receberá a coroa da vida, a qual o Senhor tem prometido aos que O amam” (Tg 1.12). Aleluia! Está é a quarta razão pela qual o cristão pode transformar suas provações em grandes alegrias: ele sabe que maior é o galardão daquele que, mesmo sendo muito provado, permanece firme em sua fé.

Não à toa, a palavra “paciência” (ou “perseverança”, em outras versões), que é o resultado de suportar as provações (Rm 5.3; Tg 1.3), aparece no texto bíblico ligada não apenas às tribulações (Rm 5.3), às aflições (2 Co 6.4) e às perseguições (2 Ts 1.4; Tg 1.2,3), mas também à vida eterna (Lc 21.19; Rm 2.7; Hb 10.36), à esperança (Rm 5.3; 15.4,5; lTs 1.3) e à alegria (Cl 1.11). Logo, ser provado é motivo de alegria porque nosso prêmio por suportar as provações serão a vida eterna, a coroa da vida, a esperança que não murcha e a alegria que não tem fim. Portanto, louve a Deus nas suas provações! “Tende grande gozo quando cairdes em várias provações” (Tg 1.2), porque “em todas essas coisas, somos mais do que vencedores por aquele que nos amou” (Rm 8.37)!

Bibliografia utilizada neste capítulo

ERICKSON, Millard J., Introdução à Teologia Sistemática. São Paulo: Vida Nova, 2008.
HENRY, Matthew. Comentário Bíblico Novo Testamento — Atos a Apocalipse — Edição Completa. Rio de Janeiro: CPAD, 2012.
RICHARDS, Lawrence O., Comentário Devocional da Bíblia. Rio de Janeiro: CPAD, 2012.
VINE, W. E.; UNGER, Merril E; WHITE JR, William, Dicionário Vine. Rio de Janeiro: CPAD, 2002.
ERICKSON, Millard J., Introdução à Teologia Sistemática. São Paulo: Vida Nova, 2008, pp. 241 e 243.
6 VINE, Ibidem, p. 842.
4 HENRY, MATTHEW, Comentário Bíblico Novo Testamento — Atos a Apocalipse. Rio de Janeiro: CPAD, 2012, p. 824.
5 HENRY, Ibidem, p. 824.
3 RICHARDS, Ibidem, pp. 951 e 952.
1 VINE, W. E.; UNGER, Merril F.; WHITE JR, William, Dicionário Vine, Rio de Janeiro: CPAD, 2002, pp. 910, 911 e 1014.
2 RICHARDS, Lawrence O., Comentário Devocional da Bíblia. Rio de Janeiro: CPAD, 2012, p. 951.

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