Lição 10 – O Perigo da Busca pela Autorrealização Humana

O perigo da busca pela autorrealização humana - Silas Daniel - Ao falar, no final do capítulo 3, sobre a sabedoria que vem do Alto, o apóstolo contrasta-a com a falsa sabedoria, a sabedoria terrena, que se baseia na “amarga inveja” e no “sentimento faccioso” (Tg 3.14,16). Prosseguindo, então, nesse raciocínio, Tiago começa o capítulo 4 falando sobre a origem das disputas e dos conflitos entre as pessoas, e dos males do orgulho humano. E o apóstolo já vai direto ao assunto no primeiro verso do capítulo, ao encetá-lo com a pergunta: “Donde vêm as guerras e pelejas entre vós?” (v.la).

Ora, não poucas vezes, somos tentados a culpar as pessoas ou a situação à nossa volta pelos conflitos, mas Tiago é claro quanto à real origem das disputas e conflitos: ele afirma que tudo começa dentro de nós (v.lb). Sendo assim, urge atentarmos para a repreensão do apóstolo, até porque ela nos apresenta alguns passos que devemos tomar para evitar que nos tornemos fontes de conflitos, como veremos a seguir.

Em primeiro lugar, sempre analise as suas reais motivações

A primeira reflexão para a qual a repreensão de Tiago nos leva diz respeito à necessidade de analisarmos as nossas reais motivações. O versículo 3 é enfático quanto a esse ponto. Ali, Tiago afirma que, em vez de forçarmos para conseguir as coisas que desejamos, devemos pedi-las confiantemente a Deus (v.2b); só que, em seguida, ele acrescenta que nem adianta pedirmos a Deus o que desejamos quando o que pedimos a Ele é com base em péssimas motivações: “Pedis e não recebeis, porque pedis mal, para o gastardes em vossos deleites” (v.3). Ou na versão da Nova Tradução na Linguagem de Hoje (NTLH): “E, quando pedem, não recebem porque os seus motivos são maus. Vocês pedem coisas a fim de usá-las para os seus

própriosprazeres” (Tg 4.2,3 — grifos meus).

Ou seja, o que o apóstolo Tiago está afirmando aqui é que o verdadeiro cristão não é fonte de conflitos porque ele harmoniza os seus desejos com a santidade de Deus; ele harmoniza as suas motivações com o que é santo. Em outras palavras, não basta que nossos alvos sejam bons; nossas motivações também têm que ser boas. Elas devem refletir a nossa comunhão com Deus, que é santo.

O apóstolo Paulo, escrevendo em sua Primeira Epístola aos Coríntios sobre o uso correto dos dons espirituais, trata do tema do amor e, quando o faz, apresenta o amor como aquilo que caracteriza uma motivação santa. Isto é, nenhuma motivação é correta se não se baseia no amor cristão (1 Co 13.1-7).

Outro parâmetro para avaliação das nossas motivações, além do amor e da santidade, é a busca da glória de Deus. A Bíblia diz que, em tudo o que fazemos, devemos buscar a glória de Deus acima de tudo (1 Co 10.31).

Em segundo lugar, considere os meios utilizados

Em segundo lugar, a repreensão de Tiago nos aponta para a necessidade de não apenas refletirmos sobre nossas motivações, mas também sobre os meios que utilizamos para chegar aos fins que almejamos. Ou seja, não basta também que os alvos que desejamos alcançar sejam corretos, e nem que as motivações que nos levam a buscá-los também sejam corretas; é preciso ainda atentar para que os meios usados para atingir esses alvos sejam igualmente corretos.

Não há problema em desejarmos realizar coisas ou mesmo buscarmos uma realização pessoal, contanto que o tipo de realização que procuramos não seja pecaminosa em si mesma e que também as nossas motivações e os meios pelos quais objetivamos alcançar essas realizações também não sejam pecaminosos, mas completamente sadios.

Um fato impactante sobre esse ponto na Epístola de Tiago é que a repreensão do apóstolo chama a atenção para métodos extremamente terríveis que estavam sendo usados em sua época. Essa constatação fica bem clara quando acompanhamos o raciocínio que ele desenvolve no versículo 2 como aparece em algumas outras versões em português, que procuram ser ainda mais precisas na tradução do texto original grego. Vejamos, por exemplo, o versículo 2 na NTLH: “Vocês querem muitas coisas; mas, como não podem tê-las, estão prontos até para matar a fim de consegui-las. Vocês as desejam ardentemente; mas, como não conseguem possuí-las, brigam e lutam” (Tg 4.2 — grifos meus). O Comentário Bíblico Pentecostal do Novo Testamento traz ainda a seguinte tradução especial para a referida passagem: “Você deseja, mas náo tem; então você mata. Você tem inveja, mas é incapaz de conseguir, então você guerreia e peleja”.1

Como vemos, o texto bíblico no original dá a ideia de pessoas que estão tão cegas pelos seus desejos que já se encontram totalmente fora de controle, ao ponto de haver entre elas gente que estava disposta até a matar para conseguir o que desejava! Essa é uma interpretaçãomais correta, que mostra de forma chocante até que ponto pode chegar uma pessoa possuída e dominada por um desejo.

Há, porém, uma outra interpretação dada a essa passagem, como lembra o Comentário Bíblico Pentecostal: “Existe entre os comentaristas uma acentuada tendência para interpretar a exortação de Tiago ‘combateis e guerreais’ (Tg 4.2) como uma simples figura de retórica e não uma verdadeira acusação de assassinato. De acordo com esses estudiosos, Tiago está acompanhando a precedência de Jesus quando se referiu ao ódio como assassinato (Mt 5.21,22)”.2 Entretanto, como sublinha a referida obra, parece muito mais provável que Tiago está aqui aludindo à “omissão de cuidar ‘dos órfãos e das viúvas’ (Tg 1.27), assim como de outros membros indigentes da comunidade (Tg 2.15,16)”, como a causa “de mortes desnecessárias”. Logo, “o desejo pecaminoso de ‘gastar em vossos deleites’ (Tg 4.3)” é também “uma espécie de assassinato”.3

Ademais, devemos nos perguntar se nossa interpretação pró- -retórica e pró-espiritualização dessa ideia de morte nesta passagem bíblica, não se dá porque nos choca imaginar que alguns ditos cristãos dos dias de Tiago estavam levando irmãos em Cristo mais necessitados — e pobres de forma geral — à morte devido a seus interesses egoístas, que lhes fazia omitirem-se de ajudar essas pessoas. Ao lutarem apenas pelos seus próprios deleites, estavam, na prática, mesmo que indiretamente, combatendo e guerreando contra seus irmãos necessitados, levando-os, dessa forma, à morte.

Resistindo à cultura humana pecaminosa

A partir do versículo 4, Tiago entrelaça a busca pecaminosa com o sistema que domina a maior parte da humanidade, e que é chamado na Bíblia de “mundo”. O apóstolo chama de “adúlteros e adúlteras” todos os crentes que, em vez de se afastarem da cultura humana pecaminosa, em vez de se distanciarem do sistema pecaminoso fomentado pelo Diabo, se unem a ele. Ou seja, o relacionamento do cristão com esse sistema é traição a Deus, é traição ao nosso relacionamento e compromisso com Ele, é adultério espiritual.

O meio-irmão de Jesus é enfático: “A amizade do mundo é inimizade contra Deus” e “Qualquer que quiser ser amigo do mundo constitui-se inimigo de Deus” (Tg 4.4). Esse ensino é frisado também pelos apóstolos Paulo e João em 2 Coríntios 6.14-

18 e 1 João 2.15-17.

Nessa passagem, um aspecto muito importante ressaltado por Tiago sobre o nosso relacionamento com Deus é que o “Espírito, que em nós habita, tem ciúmes” (v. 5). A construção do versículo 5 no original grego não é muito clara, podendo esse texto significar que o espírito humano tem a tendência natural “de opor-se a Deus e ao próximo”,4 o que estaria implícito na expressão traduzida como “ciúmes”; ou então que o Espírito Santo tem ciúmes de nós, isto é, zelo intenso por nós. A maioria esmagadora dos comentaristas bíblicos, à luz do que afirmam o final do versículo 4 e o início do versículo 6, prefere a segunda interpretação para o versículo 5, que é também a interpretação aceita por mim: Tiago quer dizer aqui que o Espírito Santo de Deus tem ciúmes de nós. O Consolador, aquEle que intercede por nós e em nós com gemidos inexprimíveis (Rm 8.26,27) e se entristece frente aos nossos pecados (Ef 4.30), o nosso Ajudador, que nos guia na caminhada espiritual e no relacionamento com o Pai celestial através de Cristo (Rm 8.5-11), tem um forte, intenso e amoroso zelo por nós.

Sim, Deus tem ciúmes dos seus filhos!

Parece estranha a ideia de que Deus tem ciúmes, mas é exatamente disso que Tiago está falando no versículo 5. E a expressão “...diz a Escritura...” não quer dizer que as palavras que vêm a seguir — “O Espírito que em nós habita tem ciúmes” — se trata de uma citação fiel, ao pé da letra, de algum texto do Antigo Testamento. O que Tiago diz é que essa é uma das mensagens das Sagradas Escrituras no Antigo Testamento: o Espírito do Senhor tem ciúmes de seus filhos.

Há inúmeras passagens do Antigo Testamento que revelam isso, especialmente aquelas que dizem respeito ao relacionamento entre Deus e o povo de Israel. Em seu clássico O Conhecimento de Deus, o teólogo britânico James I. Packer dedica um capítulo inteiro para relembrar algumas dessas fortes passagens do texto sagrado com o objetivo de refletir sobre esse aspecto divino pouco abordado hoje em dia — o ciúme de Deus. Escreve Packer:

“Quando Deus tirou Israel do Egito, levando o povo para o Sinai e dando-lhes sua lei e aliança, seu ciúme foi um dos primeiros fatos a respeito de Si mesmo que lhes ensinou. A sanção do segundo mandamento, pronunciado em voz audível para Moisés nas ‘tábuas de pedra escritas pelo dedo de Deus’ (Ex 31.18) era este: ‘Porque Eu sou o Senhor teu Deus, Deus zeloso” (Ex 20.5). Mais tarde, Deus falou a Moisés de modo mais direto: ‘O nome do Senhor é Zeloso; sim, Deus zeloso é Ele’ (Ex 34.14). [...] De fato, a Bíblia fala bastante sobre o ciúme de Deus. Há diversas referências no Pentateuco (Nm 25.11; Dt 4.24; 6.15; 29.20; 32.16,21), nos livros históricos (Js 24.19; 1 Rs 14.22), nos Profetas (Ez 8.3-5,16; 38 e 42; 23.25; 36.5; 38.19; 39.25; J1 2.18; Na 1.2; Sf 1.18; 3.8; Zc 1.14; 8.2) e nos Salmos (78.58; 79.5). Ele [seu zelo] é constantemente apresentado como um motivo para [Deus] agir, seja em ira ou misericórdia: ‘Terei zelo pelo meu santo nome’ (Ez 39.25); ‘Com grande zelo estou zelando por Jerusalém e Sião’ (Zc 1.14); ‘O Senhor é um Deus zeloso e vingador’ (Na 1.2)”.5

O apóstolo Paulo também fala sobre o ciúme de Deus, ao lançar sobre os orgulhosos cristãos de Corinto a seguinte pergunta: “Ou irritaremos o Senhor? Somos nós mais fortes do que Ele?” (1 Co 10.22). Nessa passagem, Paulo está afirmando aos crentes co- ríntios que havia uma impossibilidade moral de se beber “o cálice do Senhor” e beber “o cálice dos demônios” (1 Co 10.21).

Como ressalta Donald Metz, “o cálice dos demônios representava o apogeu dos banquetes dos pagãos nos quais eram feitas três saudações em honra aos deuses.

Um crente não podia tomar parte em tal rito pagão sem ofender a sua consciência. Qualquer tentativa de ter comunhão com Deus e, ao mesmo tempo, de participar deliberadamente de práticas idólatras provocará a irritação do Senhor (1 Co 10.22; Dt 32.21)”.6

Lembrando ainda que, nessa mesma Epístola, alguns capítulos antes, Paulo já falara do ciúme divino aos crentes em Corinto, evocando justamente o fato de que, desde o dia em que aceitaram Cristo como Senhor e Salvador, o Espírito Santo passou a habitá- -los (1 Co 6.19,20), mesmo fato frisado por Tiago (Tg 4.5). E o apóstolo aos gentios ainda revisitaria esse assunto na sua Segunda Epístola aos Coríntios (2 Co 6.14-18).

Submetendo-se a Deus

Nos versículos 6 a 10, o apóstolo Tiago exorta seus leitores a fugirem das paixões pecaminosas se submetendo a Deus. Ele começa nos lembrando que o Espírito de Deus, que em nós habita e tem zelo santo por nós, nos admoesta para que obtenhamos “maior graça” (v.6). Para isso, basta que, seguindo sua admoestação, sujeitemo-nos a Deus, isto é à sua vontade, que é “boa, agradável e perfeita” (Rm 12.2).

Assevera Tiago que os orgulhosos, os soberbos, os egoístas, são resistidos por Deus, que “dá graça”, isto é, a “maior graça”, apenas aos humildes (Tg 4.6b). Na sequência, Tiago relaciona o sujeitar-se a Deus com o resistir ao Diabo (v.7), o que significa que o Diabo procura de todas as formas atrapalhar para que não nos sujeitemos à vontade de Deus. Porém, se resistirmos às suas sugestões, afirma o apóstolo, ele fugirá de nós. Ou seja, a melhor forma de mantermos o Diabo afastado de nós é nos sujeitarmos à vontade de Deus.

Em seguida, o apóstolo explica em detalhes como se dá essa submissão a Deus, no que ela consiste.

Em primeiro lugar, diz ele que é preciso se aproximar de Deus, isto é, buscá-lo sinceramente: “Chegai-vos a Deus” (v.8a). A consequência disso é que Deus se chegará a nós (v. 8b) — ou seja, teremos comunhão com Ele e seremos abençoados pela sua presença em nossas vidas. “Buscar-me-eis, e me achareis, quando me buscardes com todo o vosso coração” (Jr 29.13).

Em segundo lugar, é preciso se arrepender dos pecados e mudar de atitude: “Limpai as mãos, pecadores” (v.8c). Ter as mãos limpas fala de chegar-se a Deus com a consciência limpa devido ao arrependimento sincero. Paulo fala de levantar as mãos em oração diante do Senhor “sem ira nem contenda” (1 Tm 2.8), purificado.

Em terceiro lugar, é preciso dar fim ao “duplo ânimo” (v.8d), isto é, ao hesitar entre Deus e o mundo, ao coxear entre a vontade de Deus e as paixões pecaminosas. 

Em quarto lugar, “purificai o coração” (v.8e), que significa aqui ter um coração sincero, sem falsidade, sem maldade. Só os puros de coração verão a Deus (Mt 5.8), isto é, só os sinceros de coração poderão ter um relacionamento real com Deus.

Ao final, Tiago reforça a necessidade de arrependimento sincero, de quebrantamento verdadeiro perante Deus: “Senti as vossas misérias, e lamentai, e chorai; converta-se o vosso riso em pranto, e o vosso gozo, em tristeza” (v.9). Tudo isso que acabamos de ver é o que significa biblicamente sujeitar-se a Deus, submeter-se a Ele, ou, como acrescenta Tiago ainda, humilhar- se diante do Senhor. O resultado dessa atitude é claro: “Humi- lhai-vos perante o Senhor, e Ele vos exaltará” (v. 10 ■— grifo meu).

Em suma, Tiago nos ensina nessa bela passagem de sua epístola que não há vitória sobre as paixões pecaminosas e nem exaltação espiritual na vida do cristão sem humilhação diante de Deus, sem submissão total à sua vontade, que se dá através desses quatro passos acima elencados a partir de seu próprio texto. E mais: vivendo assim, não teremos, inclusive, conflitos entre nós, porque nossas motivações, desejos e formas de agir estarão completamente harmonizados com a perfeita vontade do Senhor.




Bibliografia utilizada neste capítulo

ARRINGTON, French L.; STRONSTAD, Roger (editores). Comentário Bíblico Pentecostal do Novo Testamento. Rio de Janeiro: CPAD, 2004.

Bíblia de Estudo Pentecostal. Rio de Janeiro: CPAD, 1995.







5 PACKER, J. I., O Conhecimento de Deus. São Paulo: Mundo Cristão, 1973, pp. 152 e 153.

6 Comentário Bíblico Beacon — Romanos e 1 e 2 Coríntios, vários autores, Rio de Janeiro: CPAD, 2014, pp. 321 e 322.







4 Bíblia de Estudo Pentecostal. Rio de Janeiro: CPAD, 1995, p. 1931.







1 ARRINGTON, French L.; STRONSTAD, Roger (editores), Comentário

Bíblico Pentecostal do Novo Testamento. Rio de Janeiro: CPAD, 2004, pp.

1680 e 1681.

2 Ibidem, p. 1681.

3 Ibidem, p. 1681.

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