O cuidado com a língua - Silas Daniel - Após estabelecer no capítulo 2, ao tratar sobre a relação entre fé e obras, as bases teológicas de suas recomendações éticas, Tiago passa agora, a partir do capítulo 3, para os assuntos de natureza mais prática, que faziam parte do dia a dia dos seus leitores. Como frisa o pastor e teólogo norte- -americano Timothy B. Cargal,
as mudanças de comportamento tratadas por Tiago a partir desse capítulo em diante “são urgentes, pois, em um futuro não muito distante (Tg 5.9), os crentes deverão ser julgados pelo único ‘Legislador e Juiz’ (Tg 4.12), e alguns serão julgados com maior severidade que outros (Tg 3.1)”, de maneira que “a certeza desse iminente julgamento perante Deus traz consigo muitas responsabilidades não só para cada um deles como para com seus semelhantes”.1
as mudanças de comportamento tratadas por Tiago a partir desse capítulo em diante “são urgentes, pois, em um futuro não muito distante (Tg 5.9), os crentes deverão ser julgados pelo único ‘Legislador e Juiz’ (Tg 4.12), e alguns serão julgados com maior severidade que outros (Tg 3.1)”, de maneira que “a certeza desse iminente julgamento perante Deus traz consigo muitas responsabilidades não só para cada um deles como para com seus semelhantes”.1
O objetivo de Tiago nessa segunda parte de sua epístola, permeada de exemplos práticos, é que seus leitores examinem a si mesmos para assegurarem que escaparão do julgamento vindouro. E para isso, o apóstolo, antes de adentrar o primeiro tema prático
— sobre o poder da língua e os cuidados que o cristão deve ter com ela —, focaliza o primeiro obstáculo ao autoexame: a tendência, fruto da nossa natureza pecaminosa, de nos colocarmos sempre acima das outras pessoas.
Não somos superiores a nossos irmãos em Cristo e a humildade deve caracterizar os mestres na Igreja
O apóstolo Tiago abre o capítulo 3 alertando seus leitores para o perigo de alguns deles se acharem superiores aos demais devido à sua posição de mestres na Igreja. Tiago chega mesmo a
dizer que seus leitores deveriam ter muito cuidado ao desejarem ser mestres: “Meus irmãos, muitos de vós não sejam mestres, sabendo que receberemos mais duro juízo” (v.l). Apesar de parecer aqui que Tiago está chegando ao ponto de desestimular os seus leitores a se tornarem mestres, como se ser mestre fosse algo mau, negativo, na verdade ele está, num recurso de retórica, apenas chamando a atenção de seus leitores para a imensa responsabilidade que há em ser um mestre na Igreja. Aliás, a Epístola de Tiago é um dos textos do Novo Testamento que mais usam o recurso da retórica na exposição de seus assuntos e argumentos.
Ao referir-se a “mestres”, o apóstolo tem em mente exatamente todos aqueles crentes que exercem a atividade de ensino na Igreja. Trazendo para os dias de hoje, aqui estão incluídos os pastores, pregadores da Palavra de Deus, professores de Escola Dominical, obreiros em geral, dirigentes de igreja, missionários ou qualquer irmão em Cristo que exerça, reconhecidamente, um ministério de ensino entre o povo de Deus. Ora, uma vez que só pode dar quem tem para dar, isto é, só pode ensinar quem tem realmente recebido e aprendido o bastante para poder ensinar, e uma vez também que Jesus afirmou que “a quem muito foi dado, muito será exigido; e a quem muito foi confiado, muito mais será pedido” (Lc 12.48), é óbvio que ninguém tem uma responsabilidade maior do que aqueles que ensinam a Palavra de Deus. Trata-se de uma atividade extremamente honrosa e para a qual existe uma promessa extraordinária de Deus: “...os que a muitos ensinam a justiça refulgirão como as estrelas, sempre e eternamente” (Dn 12.3); entretanto, por outro lado, como toda bênção, toda dádiva, todo dom — e o ensinar é um dom (Rm 12.6,7; Ef 4.8,11,12) — traz consigo uma responsabilidade, e essa responsabilidade é ainda maior no caso do dom do ensino, então o juízo será mais severo para os mestres. E o que assevera Tiago, inclusive incluindo-se entre os mestres, entre aqueles que passarão por esse julgamento diante de Deus: “...receberemos mais duro juízo” (Tg 3.1).
Na sequência, Tiago ressalta que os mestres também são passíveis de erros. Ele se coloca, juntamente com todos os demais mestres, no mesmo nível de falibilidade dos demais irmãos que não são mestres. Ou seja, tanto o cristão que é um mestre na Igreja como aquele crente mais simples da congregação não são moralmente perfeitos — ambos precisam da graça de Deus: “Porque todos tropeçamos em muitas coisas...” (Tg 3.2). Como ressalta Cargal à luz dessa passagem, “os professores ou mestres não são possuidores de uma posição superior ou de uma perfeição moral dentro da Igreja, pois estes também tropeçam”.2
Um detalhe importante ainda nessa passagem, como destaca também Cargal, é que ela deixa claro que “o ofício de ensinar era altamente considerado nos primórdios da Igreja, e a pretensão de ‘muitos’ da congregação de se tornarem mestres, aos quais Tiago está se dirigindo”, é uma das causas de sua “preocupação com a ambição pelo poder e pela posição (Tg 1.9,12; 2.1-4)”.3
O poder da língua
Usando como gancho o fato de que mesmo os mestres são passíveis de erro, Tiago insere o tema da língua, ao falar do “tropeço na palavra”, isto é, o tropeço na fala: “Se alguém não tropeça em palavra, o tal varão é perfeito e poderoso para também refrear todo o corpo” (Tg 3.2b).
Para realçar diante de seus leitores o poder da língua, o apóstolo usa duas metáforas: a do freio na boca dos cavalos e a do leme do navio (Tg 3.3,4). As duas ilustrações evidenciam como esses dois objetos menores, essas pequenas partes de um todo, têm o poder de influenciar completamente o todo, de direcionar e dirigir todo o conjunto — o freio dirige as ações dos cavalos e o leme conduz o imenso navio na direção que o capitão deseja. Apesar de alguns comentaristas verem nessas metáforas ilustrações para o importante papel de influência que os mestres teriam na igreja, entendendo que Tiago se refere aqui à “língua” dos mestres como controlando todo o “corpo” da Igreja, na verdade uma leitura atenta dessa passagem mostra que o assunto aqui já é outro. Os mestres já não estão no foco. O fato de também tropeçarem na fala como qualquer outra pessoa (Tg 3.2b) é que foi usado como gancho para o assunto “língua” — ou poder da língua. Ou seja, Tiago já não está se dirigindo à questão dos mestres, mas a um problema que todos os crentes enfrentam individualmente: a necessidade de controlarem suas línguas, de serem bons mordomos do que falam.
O apóstolo lembra que a língua “é um fogo”. A forte imagem que ele apresenta nos versículos 5 e 6, ao comparar a língua como um pequeno fogo que incendeia um bosque, objetiva justamente enfatizar os resultados trágicos de uma língua fora de controle. Ela é extremamente destrutiva, destruidora. Nesse caso, é uma língua que não tem freio, que não é controlada pela pessoa. Nessas condições, ela passa a ser um instrumento do “inferno” (v. 6).
A língua só pode ser domada pela ação do Espírito Santo no coração
O apóstolo Tiago afirma que embora os animais mais bravos possam ser amansados pelo homem, a sua própria língua não pode ser domada por ele (Tg 3.7,8). Ele assevera claramente que a língua “é um mal que não se pode refrear, está cheia de peçonha mortal” (Tg 3.8b). Ou seja, não adianta tentarmos, por nossas próprias forças, domarmos a nossa língua. Então, como fazê-lo? A Palavra de Deus é clara: somente pela ação do Espírito Santo.
Tiago está falando aqui da língua como um fogo que tem o poder de colocar em chamas, no sentido de destruição, todo o curso da existência de uma pessoa — “...inflama o curso da natureza...” (Tg 3.6b) —, porém a Bíblia fala de um fogo santo, advindo do Espírito Santo, que in- cendeia positivamente nossa fala (Lc 3.16; At 2.2,3; 1 Ts 5.19), purificando-a, santificando-a, restaurando-a e tornando-a canal de bênção. Aliás, o próprio Tiago afirma que da língua pode
proceder tanto a bênção quanto a maiaiçao (no sentiao ae raiar o bem e bendizer, e de falar o mal e maldizer), e adverte seus leitores a não viverem nessa inconstância, mas a terem suas línguas apenas como canais de bênção (Tg 3.9,10). Ora, somente o Espírito Santo pode fazer isso, porque Ele vai até o centro do problema: o coração humano.
Lembremos que “língua” é uma expressão que se refere à linguagem, à fala, uma vez que a língua é apenas um veículo que expressa uma realidade interior, uma realidade que se encontra na mente, no coração do ser humano. O que determina se a língua será canal do mal ou do bem é o estado do coração da pessoa. Disse Jesus: “Do que há em abundância no coração, disso fala a boca” (Mt 12.34). Logo, o que Tiago está dizendo aqui é que tudo é uma questão de ter a nossa vontade, o nosso coração, controlados por Deus. Se é a vontade que põe freio na língua, e nossa vontade é continuamente má por causa do pecado, não poderemos frear a língua, a não ser que Deus reine em nossa coração, a não ser que permitamos que o Espírito Santo nos guie, reine sobre nossa vontade, nos governe (Rm 8.5-11). Isso ocorre quando buscamos a presença de Deus e somos, assim, cheios do Espírito; então, o fruto do Espírito em nós gerado produz temperança, autocontrole (Ef 5.18-21; G1 5.16,22), e domamos nossa língua.
Ora bendizendo, ora amaldiçoando — uma contradição moral e desnaturai
Outro detalhe é que quando Tiago fala que com a língua “bendizemos a Deus” (v. 9), provavelmente ele tinha em mente também o fato de que os cristãos de sua época cultivavam o costume dos judeus daqueles dias — igualmente comum entre alguns judeus ortodoxos de hoje — de sempre acrescentar a expressão “Bendito seja Ele!” ao final de toda menção que faziam ao nome de Deus em uma fala. Ora, como os crentes da Igreja Primitiva nessa época eram todos judeus, e estes eram o público alvo da Epístola de Tiago, “essa era uma expressão apropriada de reverência para cada cristão primitivo”.
Como salienta A. F. Harper, a contradição moral de muitos dos cristãos judeus dos dias de Tiago em relação à língua consistia no fato de que, “esquecendo o segundo grande mandamento de nosso Senhor (Mt 22.36-29), e provocados pela ira, eles estavam amaldiçoando os seus irmãos, que foram feitos à imagem e semelhança de Deus, isto é, feitos à imagem de Deus (cf. Gn 1.26,27). O Novo Testamento ensina que mesmo uma maldição murmurada ou qualquer disposição irada contra o próximo é uma contradição à nossa fé cristã (cf. Mt 5.22). Não convém que isso se faça assim (Tg 3.10) entre os cristãos, porque essas atitudes e atos são contrários a Deus”.5 E Harper continua, explorando o significado das ilustrações que Tiago usa para realçar essa contradição moral na língua, e que ressaltam que essa contradição moral é, na verdade, sobretudo e intrinsecamente, uma contradição desnaturai:
“Essa contradição na conduta é tão desnaturai quanto imoral. A palavra ‘Porventura’ (v. 11 — meti) espera um claro ‘Não’ como resposta. O sentido é: ‘Você certamente não espera isso, espera?’. Ninguém que visita fontes salgadas, como podem ser encontradas próximo ao Mar Morto, esperaria encontrar água salgada e água doce saindo da mesma fonte. E se isso ocorresse, a água salgada estragaria a doce; a má estragaria a boa. O pomar e a vinha ensinam a mesma verdade. ‘Conhece-se o fruto pela árvore’. Jesus lembrou aos seus ouvintes que não se colhem ‘uvas dos espinheiros ou figos dos abrolhos’ (Mt 7.16). Tiago faz eco a essa verdade quando pergunta: ‘Pode também a figueira produzir azeitonas ou a videira, figos?’ (Tg 3.12)”.6
Ou seja, a língua indomada, inconstante e dobre é uma contradição moral e desnaturai. Pense nisso: todas as vezes que você permite que sua velha natureza, isto é, sua natureza pecaminosa, domine por alguns momentos a sua língua, então você está cometendo um ato contra Deus, mas também contra a nova condição que você ganhou em Cristo, contra a nova natureza que foi gerada em você pelo Espírito Santo através da exposição da Palavra de Deus (Tg 1.18). Se você é uma nova pessoa em Cristo, então o que você fala deve estar em sintonia com sua nova maneira de viver, com sua nova natureza em Cristo. Afinai, “se alguém entre vós cuida ser religioso e não refreia a sua língua, antes engana o seu coração, a religião desse é vã” (Tg 1.26).
Pronto para ouvir e tardio para falar
Para que saiamos da inconstância, para que não sejamos alternadamente fontes do bendizer e do maldizer, fontes de água doce e de águas amargas, produtores ora de bons frutos, ora de maus frutos pela nossa fala (Tg 3.11,12), devemos permitir que o Santo Espírito de Deus reine em nossos corações. Dessa forma, e tão somente dessa forma, conseguiremos cumprir a bela, sábia e perfeita recomendação do apóstolo Tiago sobre a fala, pronunciada ainda no início de sua epístola: “Mas todo homem seja pronto para ouvir, tardio para falar, tardio para se irar” (Tg 1.19).
Na vida cristã, não deve haver tagarelice e falas impensadas. O cristão deve saber ouvir, ele deve estar sempre pronto para ouvir as pessoas. Além disso, o cristão também não deve ser “pavio curto”, irritadiço, impaciente, intemperante. Ele deve ser longânimo, uma qualidade do fruto do Espírito em sua vida (G1 5.22). Ademais, diz ainda a Palavra de Deus: “Irai- vos e não pequeis; não se ponha o sol sobre a vossa ira” (Ef 4.26). Ou seja, devemos evitar o máximo possível a irritação e, quando ela chegar, ela deve passar rápido. “Não se ponha o sol sobre a vossa ira” significa que, no mesmo dia, essa irritação deve passar.
Tudo isso só é possível, repito, na vida daquele que foi gerado pela Palavra da Verdade (Tg 1.18), isto é, na vida daquele que teve gerada em si uma nova natureza em Cristo e que busca todos os dias fortalecer-se em Deus, alimentar sua nova natureza, enchendo-se do Espírito Santo.
Bibliografia utilizada neste capítulo
ARRINGTON, French L.; STRONSTAD, Roger (editores), Comentário Bíblico Pentecostal do Novo Testamento. Rio de Janeiro: CPAD, 2004.
Comentário Bíblico Beacon — Hebreus a Apocalipse, vários autores. Rio de Janeiro: CPAD, 2014.
5 Ibidem, p. 176.
6 Ibidem, p. 176.
4 Comentário Bíblico Beacon — Hebreus a Apocalipse, vários autores, Rio de Janeiro: CPAD, 2014, p. 176.
3 Ibidem, p. 1677.
2 Ibidem, p. 1677.
1 ARRINGTON, French L.; STRONSTAD, Roger (editores), Comentário Bíblico Pentecostal do Novo Testamento. Rio de Janeiro: CPAD, 2004, p. 1677.
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