Lição 04: Os Benefícios da Justificação (Adultos)

Romanos 5.1-4 - Sendo, pois, justificados pela fé, temos paz com Deus por nosso Senhor Jesus Cristo; pelo qual também temos entrada pela fé a esta graça, na qual estamos firmes; e nos gloriamos na esperança da glória de Deus. E não somente isto, mas também nos gloriamos nas tribulações, sabendo que a tribulação produz a paciência; e a paciência, a experiência; e a experiência, a esperança.

Um Olhar em duas Direções

“Sendo, pois, justificados pela fé... ” (5.1 a). Há um consenso entre os comentaristas que a seção que começa no capítulo cinco de Romanos é uma transição entre Romanos 1.18—4.25 e Romanos 5.1—8.39. Ela é, portanto, o elo que liga o que vem antes e o que vem depois. Retrospectivamente, Romanos 5.1 mostra o fato do que seja a justificação em Cristo Jesus. Por outro lado, olhando prospectivamente, Romanos 5.1 também enxerga aquilo que vem como resultado dessa justificação. É um olhar para a frente. Stanley Clark destaca que “a diferença de opinião a respeito de se associar o capítulo 5 com os capítulos anteriores (3.21—4.25) ou depois (6.1—8.39) sugere que seu papel é transitório; isto é, especialmente verdadeiro para os primeiros 11 versos. Em alguns aspectos, Romanos 5 olha para trás, para a gloriosa verdade da justificação do homem pela fé. No entanto, os conceitos vertidos têm mais em comum com 6.1—8.39 com 3.21—4.25. O tema da seção inteira (5.1—8.39) que é ‘justificou a nova vida do homem”’.

Temos Paz!

"... temos paz com Deus por nosso Senhor Jesus Cristo” (5.1 b). O efeito imediato da justificação é a paz com Deus. Os manuscritos gregos pertencentes ao texto crítico do Novo Testamento trazem a palavra “tenhamos” em lugar de “temos”. Todavia, os eruditos em Novo Testamento observam que a evidência interna do contexto dessa passagem exige o sentido presente do verbo. Nesse caso, a tradução “temos” é preferível.

A paz com Deus é, portanto, uma realidade presente na vida do crente. Ela é a coroação ou resultado imediato da justificação. Não é algo que vamos ter somente no futuro, mas é algo que o crente já desfruta agora. Toda a argumentação de Paulo aponta na direção do aqui e agora na vida do crente. Andrew Murray, antigo expositor bíblico, comenta: “A paz com Deus é uma bênção coordenada à justificação, que se realiza sob circunstâncias de condenação e de sujeição à ira de Deus; e a justificação contempla nossa aceitação diante de Deus, como justos. E o pano de fundo é a nossa alienação diante de Deus; a paz com Deus contempla nossa restauração ao favor e à luz do rosto divino. O fato de que a paz com Deus recebeu a preeminência dentre as bênçãos provenientes da justificação é coerente com o status que a justificação nos assegura. ‘Paz com Deus’ denota relacionamento com Deus. Não se trata apenas de serenidade e tranquilidade de nossas mentes e corações; mas refere-se ao estado de paz que flui da reconciliação (w. 10,11) e reflete-se, primeiramente, sobre nossa alienação de Deus e nossa restauração ao favor divino. A paz da mente e do coração procede da ‘paz com Deus’, sendo o reflexo em nossa consciência do relacionamento estabelecido pela justificação”.

A Porta da Graça!

“pelo qual também temos entrada pela fé a esta graça, na qual estamos firmes; e nos gloriamos na esperança da glória de Deus” (5.2). A graça de Deus é o coração da Carta aos Romanos. Tudo gira em torno dela. O expositor bíblico William Barclay, perito em grego neotestamentário, captou muito bem o sentido desse texto no original. Aqui o quadro pintado por Paulo mostra a grande porta que a justificação pela fé nos abriu. Quando essa porta se abre e entramos por ela, encontramo-nos com a graça. Não com o julgamento, recriminação ou condenação, mas com a gloriosa graça de Deus. Nos últimos anos tem havido um verdadeiro despertar da graça. Mas é preciso olhar com cuidado para esse despertamento. Nem tudo que se passa por graça tem realmente graça. Na verdade, há uma graça sendo pregada e ensinada por aí que não tem graça alguma! A graça que justifica o pecado em vez do pecador, observou Dietrich Bonhoeffer, é uma graça barata. A graça de Deus é justificadora e perdoadora, mas também é responsabilizadora.

"... e nos gloriamos na esperança da glória de Deus” (5.2). Os comentaristas Sanday e Headlam destacam que “é a glória da presença divina (Shekinah) que é comunicada aos homens (parcialmente aqui, mas) em plena medida, quando ele entrar por completo na sua presença; então o homem por inteiro será transfigurado por Ele”. O apóstolo via aqui, como destacou o expositor bíblico Frédéric L. Godet, o elevado sentimento de segurança pela alegria antecipada do nosso triunfo. Essa esperança, portanto, tem uma dimensão escatológica. Os crentes se regozijam pela esperança de um futuro que, embora ainda não desfrutado em toda a sua plenitude aqui, mas que já está construído por Deus.

"... nos gloriamos nas tribulações” (5.3). A imagem que temos quando lemos essas palavras de Paulo nos dá a impressão de que ele parece subir degraus com seu argumento. Primeiramente ele fala da graça como uma grande porta aberta que nos conduz até a presença da majestade divina. A nossa caminhada até lá é um andar movido pela esperança. Mas nesse caminho existem pedras! Enfrentamos lutas, angústias, tribulações. Mas não é motivo para desânimo, pois isso é parte natural desse caminhar. O sofrimento ou tribulações são usados por Deus para moldar nossa vida. O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento destaca que o termo thlipsesin, traduzido aqui como “tribulação”, quer dizer pressão. Nada disso serve de motivo para o desânimo, nem mesmo as pressões, porque elas conduzem à perseverança.

"... a tribulação produz a paciência” (5.3). A tribulação produz a paciência. “Nunca poderíamos desenvolver ‘paciência’ se nossas vidas estivessem isentas de problemas”, destaca William Mcdonald.

"... e a paciência, a experiência; e a experiência, a esperança” (5.4). Paulo chega agora ao estágio em que o cristão, provado pela fornalha da vida, cresceu em maturidade. Agora ele tem experiência nessa caminhada. Essa experiência lhe dá a certeza de que a sua jornada é alicerçada na esperança da vida do Reino. Não é uma esperança que olha o vazio, mas uma esperança escatológica, eterna, que se plenifica em Deus.

Romanos 5.5-11

E a esperança não traz confusão, porquanto o amor de Deus está derramado em nosso coração pelo Espírito Santo que nos foi dado. Porque Cristo, estando nós ainda fracos, morreu a seu tempo pelos ímpios. Porque apenas alguém morrerá por um justo; pois poderá ser que pelo bom alguém ouse morrer. Mas Deus prova o seu amor para conosco em que Cristo morreu por nós, sendo nós ainda pecadores. Logo, muito mais agora, sendo justificados pelo seu sangue, seremos por ele salvos da ira. Porque, se nós, sendo inimigos, fomos reconciliados com Deus pela morte de seu Filho, muito mais, estando já reconciliados, seremos salvos pela sua vida. E não somente isto, mas também nos gloriamos em Deus por nosso Senhor Jesus Cristo, pelo qual agora alcançamos a reconciliação.

Ninguém nunca Fez isso!

A nossa esperança, observa o apóstolo Paulo, não pode ser confundida porque se fundamenta na certeza. A certeza que vem com o amor de Deus que é derramado em nosso coração pelo Espírito Santo. Passamos então a experimentar o grande amor de Deus que o levou justificar ímpios pecadores. O teólogo suíço Karl Barth assim se expressou sobre essa passagem: “Gloriamo-nos, pois, na esperança, porque ela não está fundamentada em ação de nosso espírito de criaturas, mas no Espírito Santo que nos foi outorgado, mediante o derramamento do amor de Deus em nossos corações. O Espírito Santo é a obra de Deus, na fé; é o poder criador e redentor do Reino de Deus que está próximo e que, pela fé, tange o mundo dos homens e o faz ressoar como o cristal às vibrações do diapasão. O Espírito Santo é o eterno ‘Sim’ da fé que, vista do lado humano, apenas pode ser descrita como negação e vácuo; ele é o milagre inicial e criativo desta fé. O Espírito Santo é igual a Deus e por ele Deus tributa justiça ao que crer”.

“Mas Deus prova o seu amor para conosco em que Cristo morreu por nós, sendo nós ainda pecadores” (5.8). Martinho Lutero (1483-1546), reformador alemão, colocou em destaque o amor de Deus pelos pecadores quando resumiu o capítulo 5 em seu prefácio da Carta aos Romanos. “No quinto capítulo, ele fala dos frutos e das obras da fé, quais sejam: paz, alegria, amor a Deus e a todos, além de segurança, confiança, ânimo e esperança em tristeza e sofrimento. Pois, onde a fé for verdadeira, tudo isso resulta do bem superabundante que Deus nos demonstra em Cristo: de tê-lo feito morrer por nós antes mesmo de lho podermos pedir quando ainda éramos inimigos. Temos, portanto, que a fé justifica sem quaisquer obras e, mesmo assim, não sucede daí que não se deveria fazer boa obra, e sim, que as obras justas não ficam ausentes; destas, porém, os santos por nada saberem [19] inventam para si mesmos obras próprias, que não contêm nem paz, nem alegria, nem segurança, nem amor, nem esperança, nem porfia, tampouco qualquer tipo de obra e fé cristã direta”.

Romanos 5.12-21

Pelo que, como por um homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado, a morte, assim também a morte passou a todos os homens, por isso que todos pecaram. Porque até à lei estava o pecado no mundo, mas o pecado não é imputado não havendo lei. No entanto, a morte reinou desde Adão até Moisés, até sobre aqueles que não pecaram à semelhança da transgressão de Adão, o qual é a figura daquele que havia de vir. Mas não é assim o dom gratuito como a ofensa; porque, se, pela ofensa de um, morreram muitos, muito mais a graça de Deus e o dom pela graça, que é de um só homem, Jesus Cristo, abundou sobre muitos. E não foi assim o dom como a ofensa, por um só que pecou; porque o juízo veio de uma só ofensa, na verdade, para condenação, mas o dom gratuito veio de muitas ofensas para justificação. Porque, se, pela ofensa de um só, a morte reinou por esse, muito mais os que recebem a abundância da graça e do dom da justiça reinarão em vida por um só, Jesus Cristo. Pois assim como por uma só ofensa veio o juízo sobre todos os homens para condenação, assim também por um só ato de justiça veio a graça sobre todos os homens para justificação de vida. Porque, como, pela desobediência de um só homem, muitos foram feitos pecadores, assim, pela obediência de um, muitos serão feitos justos. Veio, porém, a lei para que a ofensa abundasse; mas, onde o pecado abundou, superabundou a graça; para que, assim como o pecado reinou na morte, também a graça reinasse pela justiça para a vida eterna, por Jesus Cristo, nosso Senhor.

A Culpa não Foi só de Adão

“Pelo que, como por um homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado, a morte, assim também a morte passou a todos os homens, por isso que todos pecaram” (5.12). Estamos diante de um dos textos que centrais na doutrina da justificação pela fé. Todavia, um dos mais controvertidos dessa carta. Como outras passagens de Romanos, essa Escritura está sujeita a calorosos debates. Há pelo menos uma meia dúzia de interpretações sobre essa porção da Escritura; todavia, o debate em torno desse texto não é novo. Em parte, esse debate tem sido motivado pela disputa em torno da expressão grega eph’hoipantes hemarton, que aparece no final do versículo 12 do capítulo 5 de Romanos.

Como é de se esperar, as versões bíblicas não são unânimes na tradução dessa passagem. Porém, as controvérsias começaram quando Agostinho (354-430 d.C.), bispo de Hipona, que não era versado em grego bíblico, seguiu a versão latina “in quo”, traduzindo erradamente a preposição gregaepb’hoi (porque) com o sentido de “em quem”. A sentença grega “porquanto todos pecaram”, ou “porque todos pecaram”, no texto de Agostinho ganhou o sentido apenas de “em quem todos pecaram”. Isso significa que todos os homens estão ligados seminalmente ao seu antepassado Adão. Essa crença do bispo de Hipona conduziu-o a acreditar que “os homens estavam maculados pelo pecado original, que lhes foi transmitido de geração em geração, e que por isso não mereciam ser salvos”. Esse fato, segundo Agostinho, levou Deus a arbitrar a salvação para alguns e a condenação para outros.

Na teologia do bispo de Hipona, a faculdade humana do livre-arbítrio também foi afetada. Ele não negou que o homem possuísse livre-arbítrio depois da Queda. Pelo contrário, até mesmo achou que se tratava de um bem necessário. Todavia, por causa do pecado original, ele acreditava que o homem ficou incapacitado de escolher aquilo que é bom. Nesse aspecto, o mal moral devia-se ao livre-arbítrio humano. Agostinho confirma sua concepção radical do cativeiro do livre-arbítrio quando escreve: “Quando o homem pecou por seu próprio livre-arbítrio, nesse caso, tendo o pecado sido vitorioso sobre ele, a liberdade da sua vontade foi perdida”. Em outra obra, o Livre-Arbítrio, Agostinho, escreveu: “Mas quanto a esse mesmo livre-arbítrio, o qual estamos convencidos de ter o poder de nos levar a pecar, pergunto-me se aquele que nos criou fez bem de no-lo ter dado. Na verdade, parece-me que não pecaríamos se estivéssemos privados dele”.

A argumentação de Agostinho, como foi demonstrado, ficou comprometida quando se sabe que a exegese feita por ele partiu de uma tradução equivocada do texto de Romanos. O expositor Giuseppe Barbaglio comenta que “a versão da Vulgata — ‘no qual (Adão) todos pecaram’ — na qual, por exemplo, S. Agostinho se apoiou, aduzindo uma prova fácil demais da doutrina do pecado original, deve ser excluída, porque é errada”. Por sua vez, o teólogo Millard J. Erickson destaca que Agostinho entendia que “a oração final, no versículo 12, no sentido de que nós estávamos realmente “em Adão” e, portanto, o pecado de Adão também era nosso. Mas como sua interpretação baseou-se numa tradução inadequada, precisamos analisar melhor a oração gramatical. Devemos perguntar o que significa “todos os homens pecaram”. Não significa, evidentemente, a condenação de uns para o céu e outros para o inferno, nem tampouco a supressão do livre-arbítrio humano. Erickson destaca, por exemplo, que o Senhor Jesus não considerou como condenados aqueles que ainda não tinham atingido a idade da capacidade moral. “Há vários indicadores nas Escrituras de que as pessoas não são moralmente responsáveis antes de certo ponto, o que às vezes chamamos de ‘idade da responsabilidade’ (Mt 18.3; 19.14; 2 Sm 12.23; Is 7.15; Jn 4.11)”. E conclui que fica “o fato evidente de que, antes de determinado momento na vida, não existe responsabilidade moral, pois não há consciência do certo e do errado”. Agostinho, portanto, criou um conceito de depravação no pecado que vai muito além daquele que é mostrado na Escritura. Uma exegese mais fiel ao texto confirma a corrupção do pecado e a consequente natureza pecaminosa humana; todavia, não da forma extremada como ensinou Agostinho.

Uma compreensão adequada do texto de Romanos 5.12 nos conduz a juntar unidade-universalidade. Giuseppe Barbaglio comenta com muita precisão que “não se trata, porém, de um esquema mecânico: a solidariedade que está na base não tem mão única; não envolve, fatal e necessariamente, todos os homens na esfera de ação de um só. Paulo, de fato, se dissocia da concepção típica do mito gnóstico, que via a humanidade como uma massa de vítimas inconscientes de um trágico evento originário. Ele introduz no esquema um decisivo elemento de liberdade e de responsabilidade, afirmando que o influxo de um sobre todos é condicionado pela adesão destes. Portanto, o destino humano é requerido, escolhido. No versículo 12, de fato, à causalidade de Adão ele acrescenta a decisão negativa de todos os homens: ‘por causa de um só homem o pecado entrou no mundo... porque todos pecaram. A humanidade se fez solidaria com seu cabeça ao pecar. O apóstolo não está muito distante de um significativo texto judaico, que chega a dizer: ‘Se o primeiro Adão, pecou e trouxe a morte para todos os que ainda não existiam, todos os que dele nasceram, todavia, prepararam para a própria alma os suplícios futuros; cada um escolheu as glórias futuras... Porque Adão não foi a causa única, sozinho; em relação a nós todos, cada um é, para si mesmo, Adão. Mas, diferentemente da teologia judaica, ele acentua um fator subjetivo, atribuindo à lei divina um papel ativo na proliferação dos pecados’ (cf. v. 20)”.

A ideia de uma culpa apenas compulsória, que não leva em conta as liberdades humanas, como cria Agostinho, deve ser rejeitada. O expositor Adolf Pohl confirma esse entendimento quando diz: “A amplitude do poder do pecado e da morte soma-se sua profundidade. Nossa escravização também é nutrida pelo próprio pecado cometido em atos: porque todos pecaram (Rm 2.12; 3.23). Em última análise, a miséria da humanidade consiste em sua culpa. Sem este adendo de fundamentação, nossas condições de vida seriam entendidas como uma fatalidade compulsória. Porém, trata-se de história pessoal, na qual as condições jamais servem de desculpa para o próprio fracasso (Rm 1.21). Também fora do Paraíso continua em vigor que: ‘a ti cumpre dominá-lo (o pecado)!’ (Gn 4.7). Ainda que não tenhamos de nos responsabilizar pelo fato de estarmos no mundo, temos de fazê-lo em relação aos nossos pecados de fato”.

Em uma bela e longa exposição sobre o pecado, a culpa e a liberdade de escolha, o expositor Millard J. Erickson, conclui: “Em Romanos 5, o paralelismo que Paulo traça entre Adão e Cristo em termos do relacionamento deles conosco é impressionante. Uma declaração semelhante é vista em 1 Coríntios 15.22: ‘Pois, assim como em Adão todos morrem, do mesmo modo em Cristo todos serão vivificados’. Ele afirma que, de forma paralela, o que os dois fizeram tem influência sobre nós (assim como o pecado de Adão leva à morte, o ato de justiça de Cristo conduz à vida). Que paralelo é esse? Se a condenação e a culpa de Adão nos são atribuídas sem que tenhamos alguma escolha consciente do ato que ele praticou, a mesma lógica será necessariamente válida para a atribuição da justiça de Cristo e de sua obra de redenção. Mas será que sua morte nos justifica simplesmente por causa de sua identificação com a humanidade por meio da encarnação, sem depender da aceitação pessoal e consciente de sua obra? E será que a graça de Cristo é atribuída a todos os seres humanos assim com o pecado de Adão é igualmente atribuído a todos? A resposta mais comum dos evangélicos é negativa; há muitos indícios da existência de duas categorias de pessoas: as perdidas e as salvas, e de que somente a decisão de aceitar a obra de Cristo pode torná-la eficaz em nossa vida [...] todos nós participamos do pecado de Adão e, portanto, recebemos tanto a sua natureza corrupta após a Queda quanto a culpa e a condenação vinculadas a seu pecado. No entanto, na questão da culpa, assim como na atribuição da justiça de Cristo, é preciso haver uma decisão voluntária e consciente de nossa parte. Enquanto isso não ocorre, existe apenas uma atribuição condicional de culpa. Portanto, não há condenação antes da idade da responsabilidade”.

Evitando os Extremos

Quando se afirma que o homem é moralmente responsável por suas escolhas, tendo livre-arbítrio, não devemos incorrer no erro pelagiano. Pelágio deu ênfase exagerada à responsabilidade moral e seus resultados, tornando a santidade um mero subproduto do esforço humano. Parte desse entendimento pelagiano originou-se da sua revolta quando leu as Confissões de Agostinho e as achou fatalista e derrotista. Agostinho estava em um extremo e Pelágio foi para o extremo oposto. O erro de Pelágio, como bem observou David Pawson, foi desenvolver uma perspectiva demasiadamente elevada da força de vontade humana. Dessa forma, todos podem tomar a decisão de fazer o bem e ser justos, independentemente do concurso da graça. Ao assumir essa posição, Pelágio negou a doutrina do pecado original (herdado) de Agostinho. Não havia, portanto, nenhuma corrupção herdada nem nenhuma inclinação para o mal. Cria que as pessoas eram inerentemente boas. Como ele negou a queda, não havia, portanto, necessidade de expiação ou regeneração.

Lembro-me de uma história que li há algum tempo, que serve para ilustrar o que está exposto em Romanos 5.12 e que está sendo afirmado aqui. Conta-se que um velho lenhador trabalhava em uma fazenda. Seu trabalho era rachar toras de madeira para uso da fazenda. Certo dia, enquanto passeava pela fazenda, o proprietário escutou o velho lenhador se lastimar da sorte. Ele dizia: “Adão, Adão, você me paga”. Vendo as lamúrias do velho lenhador, o fazendeiro se aproximou e perguntou a razão que o estava levando a se lamentar. Ele então disse ao patrão que Adão era o responsável por aquela situação, pois, se não tivesse pecado, ele não estaria ali. Imediatamente o fazendeiro mandou-o abandonar o seu machado e se dirigir para a casa na fazenda.

Chegando ali, o fazendeiro disse: “A partir desse momento você não precisará mais rachar lenha. Você terá novas atribuições. Seu trabalho agora é ficar na varanda da casa fazendo o serviço de vigilância com o direito de beber limonada na hora que quiser!” O velho lenhador foi às lágrimas. Quando ainda se refazia de suas emoções, o fazendeiro concluiu: “Mas o senhor não pode abrir aquela caixa fechada que está em cima do peitoril da casa”. O velho lenhador balançou a cabeça afirmativamente. Pensando com seus botões, ele achou suas novas atribuições um presente de Deus.

Os dias passaram e o velho lenhador se regozijava de sua nova situação. Não estava mais trabalhando de sol a sol, mas na sombra da casa da fazenda. Passaram-se duas semanas e ele continuava firme em seu propósito de obedecer ao seu patrão e não tocar na caixa secreta que estava no peitoril da casa. Na terceira semana, veio-lhe a curiosidade de saber o que estava dentro daquela caixa. Por que ele não poderia tocá-la? Resolveu então tocar levemente na caixa. Foi o suficiente para observar por uma abertura que havia algo dentro da caixa — um pequeno pedaço de papel. Todos os seus instintos vibraram! O que poderia estar escrito nele? Passou, então a racionalizar: Porque ele não poderia abrira caixa e ler o papel? O que havia de mal nisso? Ponderou.

Na quarta semana, o velho lenhador não resistiu à tentação e abriu a caixa! Quando retirou o pequeno papel, o seu conteúdo dizia: “Velho lenhador, a culpa não foi só de Adão. Volte já para o campo para rachar lenha”.

Sim, a culpa não foi só de Adão. Romanos 5.12 tem um sentido solidário, em que todos nós participamos da culpa de Adão, porque todos nós estávamos no lombo de Adão. Todos nós também somos responsáveis individualmente por nossos pecados e pelas escolhas que fazemos. O expositor bíblico Joseph A. Fitzmyer sublinha esse fato quando afirma: “No versículo 12, Paulo atribui a morte a duas causas, relacionadas entre si: a Adão e a todos os pecadores humanos”. Comentando Romanos 5.12, o expositor J. D. G. Dunn escreveu: “O que Paulo parece querer dizer é o seguinte: 1) Toda humanidade compartilha uma servidão comum ao pecado e à morte. Não se trata apenas da carnalidade natural, uma mortalidade criada. O pecado está ligado com isso, uma não correspondência ao melhor intencionado por Deus. A morte é o resultado de uma ruptura na criação. 2) Há dois lados nesse estado de coisas, envolvendo tanto o pecado como um dado do tecido social da sociedade e o pecado como uma ação imputável de responsabilidade individual”.

Alguns intérpretes insistem na sua fidelidade à interpretação agostiniana, não aceitando o fato de que o homem é um ser moralmente livre e que pode sim decidir-se pelo bem ou pelo mal. A meu ver, há muita tinta gasta, sem sucesso, na tentativa de provar, a partir de Romanos 5.12 (somados com outros textos bíblicos), que a crença na solidariedade da raça na queda de Adão jogou o homem numa total depravação pecaminosa a ponto de excluir a sua capacidade da livre-escolha. Para esses intérpretes, o homem “morto no pecado” não possui nenhum tipo de sensibilidade espiritual. A afirmação de Robert D. Culver, por exemplo, no sentido de que “as Escrituras ensinam a ausência completa de vida espiritual nos homens decaídos”, apenas perpetua o erro agostiniano. A tentativa de usar Efésios 2.1 como texto prova, com o argumento de que esse homem está morto e não pode escolher nada, reflete mais uma crença na tradição teológica agostiniana do que o entendimento bíblico desse texto. Esse entendimento equivocado tem feito com que wesleyanos e arminianos sejam acusados por Culver de tenderem a “minimizar a incapacidade total dos irregenerados nas questões espirituais, relacionadas a Deus, para tanto minimizando a força da linguagem bíblica sobre ela, dizendo por exemplo que ‘mortos em [...] transgressões e pecados [Ef 2.1; cf. cl 2.13] é apenas uma figura de linguagem’. O homem, dizem eles, ‘ainda tem livre-arbítrio’. Mas Paulo não está usando uma figura”.

O argumento de Culver é mais dogmático do que ortodoxo, e não reflete o pensamento bíblico. E impossível não enxergar um sentido metafórico na palavra “morto” quando observamos que Paulo usou desse tipo de recurso linguístico em outros textos de suas cartas. “Levanta-te de entre os mortos” (Ef 5.14); “vejam-se como mortos para o pecado” (Rm 6.11); “o qual dá vida aos mortos” (Rm 4.17); “sem lei está morto o pecado” (Rm 7.8); “nós morremos para o pecado” (Rm 6.2); “já morremos com Cristo” (Rm 6.8); “vós estais mortos para a lei” (Rm 7.4). Em todas essas passagens, o apóstolo atribuiu um sentido figurado a palavra “morto”; então por que somente em Efésios 2.1 ele lhe daria um sentido literal? Parece-me uma aporia difícil de ser superada. “Morto para o pecado”, portanto, carrega uma carga metafórica. Em palavras mais simples, a doutrina da natureza corrompida é bíblica, mas afirmar que ela deixou os homens totalmente impossibilitados de escolherem o bem ou o mal não é.

A depravação no pecado ensinada pelas Escrituras afirma sua dimensão corporativa, sem, contudo, negar sua dimensão moral e pessoal. Portanto, a afirmação de Culver de que o homem não regenerado é totalmente insensível para a realidade espiritual se ajusta mais ao pensamento de Agostinho do que ao pensamento de Paulo. Nesse aspecto é preciso destacar que a expressão “morto espiritual” deve ser entendida como “separado de Deus”, e não “insensível para as realidades espirituais”. O homem, mesmo separado de Deus, não deixou de possuir a capacidade de escolher o bem ou o mal. Pelo contrário, ele pode sim aceitar ou resistir a graça que lhe é oferecida. A graça, portanto, não é fatalista nem tampouco irresistível. Um dos princípios básicos da filosofia do direito é que onde não houver livre escolha não há também responsabilidade moral.

O segundo Adão

“Pois assim como por uma só ofensa veio o juísço sobre todos os homens para condenação, assim também por um só ato dejustiça veio a graça sobre todos os homens para a justificação de vida” (5.18). O primeiro Adão colocou a raça nas sombras do pecado. O quadro realmente era desesperador. Um pecou, logo todos pecaram! Um desobedeceu, logos todos desobedeceram. Paulo não explica como isso aconteceu, mas onde aconteceu — na queda do primeiro homem. Passamos a carregar conosco a natureza adâmica, todavia sem deixarmos de ser responsáveis pelos nossos atos. A queda depravou a raça, mas não lhe tirou o livre-arbítrio. Não há responsabilidade moral sem livre escolha.

O apóstolo agora mostrará que por intermédio de um homem, Jesus Cristo, o segundo Adão, veio a graça sobre todos os homens! Adão derrubou o homem. Por outro lado, Jesus veio levantar esse homem caído: “Veio a graça sobre todos os homens” (5.18). É a vontade de Deus salvar a todos (1 Tm 2.4). Stanley Clark fez o seguinte paralelo entre o primeiro e o segundo Adão: o pecado entrou por Adão, a vida entrou por Cristo; a morte reinou desde Adão até Moisés, a vida reina mediante Jesus Cristo; a ofensa de um alcançou a todos, a justiça de um alcançou a todos; pela desobediência de um, muitos foram feitos pecadores, pela obediência de um muitos serão constituídos justos”.

A Ele toda honra e toda glória.

Autor: José Gonçalves

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