O pentecostalismo representou uma rebelião popular contra o moderno culto da razão. [Karen Armstrong]
Enquanto Rudolph Bultmann desenvolvia sua abordagem de demitologização ao Novo Testamento, os pentecostais silenciosamente (bem, talvez não tão silenciosamente) oravam pelos enfermos e expulsavam demônios. Enquanto os teólogos evangélicos, seguindo os passos de B. B. Warfield, procuravam explicar por que devemos aceitar a realidade dos milagres registrados no Novo Testamento, mas, ao mesmo tempo, não esperar que ocorram hoje, os pentecostais estavam (pelo menos aos nossos olhos) testemunhando que Jesus operava “prodígios e sinais” contemporâneos quando estabeleceu a igreja. [Robert P. Menzies]
Por Gutierres Fernandes Siqueira
A modernidade é um período histórico-filosófico, influenciado pelo Iluminismo, “em que o homem passa a se reconhecer como um ser autônomo, autossuficiente e universal, e a se mover pela crença de que, por meio da razão, pode-se atuar sobre a natureza e a sociedade”, como define sinteticamente o dicionário Houaiss. O pensamento moderno é marcado pelo racionalismo, cientificismo, tecnicismo, historicismo etc. O grande deus moderno é justamente a razão humana.
O pentecostalismo é essencialmente antimoderno. Um exemplo dessa disposição é a forte crença na Bíblia como a Palavra de Deus. O povo pentecostal sempre teve a Bíblia em grande estima, ainda que fosse deficiente no exercício hermenêutico e exegético. O carinho pela “Palavra” não se traduziu, é bem verdade, em uma rígida escolástica, mas é um erro desprezar as consequências dessa paixão pelas Escrituras. A marca desse apego está na crença não apenas que a Bíblia é genericamente a voz de Deus, sem implicações práticas, mas que Deus fala ainda hoje ao seu povo, ou seja, Deus é aquele que se revela, seja escrituralmente seja profeticamente. Ele não apenas se revelou como continuamente se faz transparente!
O pentecostal lê as histórias bíblicas e se identifica com elas. A estrutura epistemológica de muitos pentecostais- especialmente daqueles que vivem no continente africano, na América Latina e na Ásia- está mais próxima da visão de mundo dos cristãos primitivos do que do racionalismo moderno ocidental. O teólogo Robert P. Menzies escreve:
A hermenêutica da maioria dos crentes pentecostais não é excessivamente complexa. Não está cheia de questões sobre a confiabilidade histórica ou repleta de cosmovisões ultrapassadas. Não é excessivamente reflexiva sobre os sistemas teológicos, a distância cultural ou as estratégias literárias. A hermenêutica do crente pentecostal típico é direta e simples: as histórias em Atos são minhas histórias. (grifo do autor).[1]
Não é à toa que as narrativas do Antigo Testamento exercem um verdadeiro fascínio nos púlpitos pentecostais, assim como as histórias de milagres de Jesus nos Evangelhos e dos apóstolos em Atos. A narrativa é, por assim dizer, o grande trunfo de identificação do pentecostal com o mundo bíblico. O pentecostal olha a Bíblia não como uma literatura a ser dissecada pela exegese ou pelos estudos críticos, mas como uma página onde ele pode mergulhar. Assim, para o pentecostal, a Bíblia como estrutura histórica passa a ser mimética.
Mesmo as motivações tortas de rejeição à teologia nutriam uma expectativa de honrar as Escrituras. Os círculos mais anti-intelectuais do pentecostalismo, por exemplo, se baseavam numa autossuficiência exagerada das Escrituras para justificar qualquer ojeriza à formalização da dogmática ou de confissões de fé. O anti-intelectualismo, de certa forma, manifestava uma crença na autonomia do conhecimento advindo pela fé. O pentecostal antigo era anti-intelectual não porque desprezasse o conhecimento, mas sim porque acredita que o conhecimento tinha como fonte o contato direto com as Escrituras por meio da orientação fideísta do Espírito Santo. Sabemos que isso é problemático, mas é instrutivo observar que esse anti-intelectualismo era mais rejeição ao formalismo do que ao conhecimento em si.
Liberalismo e Pentecostalismo
Enquanto os liberais esperavam traduzir a Bíblia para o homem moderno em um processo científico dedesmitologização, os pentecostais não estavam nem aí para a racionalidade iluminista com seu naturalismo científico e, assim, continuaram a orar a Deus pedindo a cura do corpo e o enchimento do Espírito à semelhança dos mais antigos religiosos pré-modernos. Enquanto educados teólogos protestantes do começo do século XX, filhos da burguesia, diziam que a crença em anjos e demônios era incompatível com a eletricidade e os automóveis, os pentecostais se enxergavam como parte atuante de uma batalha cósmica. O pentecostalismo é antimoderno não como militância, mas na vivência. Diferente dos fundamentalistas que usavam ferramentas racionalistas para combater a ideologia moderna, o pentecostalismo optou pelo caminho prático: a oração pelo milagre e a crença que Deus se revela. E diante de um milagre não há desmitologização que se sustente. O teólogo Amos Yong observa apropriadamente:
O surgimento do pentecostalismo nas primeiras décadas do século XX pode ser entendido, pelo menos em parte, como uma reação ao liberalismo e ao modernismo. Ao contrário dos fundamentalistas que, comprovadamente, tinham reagido ao modernismo usando o racionalismo do próprio modernismo; os pentecostais reagiram ao modernismo, em parte, com o desencadeamento de um grito de dentro do espírito humano. A glossolalia simboliza esse “discurso” contramoderno que irritou e derrubou as “gaiolas de ferro” (Weber) do racionalismo iluminista. [2]
O liberalismo procura entender Jesus à luz dos “estudos críticos que descontam a possibilidade do milagroso, os pentecostais, sem hesitação, aceitam o Jesus operador de milagres do Novo Testamento”[3]. A incompatibilidade é totalmente visível. Embora o liberalismo seja em alguma medida útil ao pentecostalismo, especialmente quando critica o excesso de dogmatismo do cristianismo ocidental, ao mesmo tempo, apresenta uma fé tão fluída e sem qualquer base autoritativa que dificilmente lembra a fé pura dos primeiros apóstolos, todavia representa tão somente mais um moralismo filosófico de base humanista. O liberalismo quis ser tão relevante ao mundo moderno que simplesmente se tornou igual ao mundo moderno.
Pentecostalismo e Fundamentalismo
Como já observado acima, a crença antimoderna do pentecostalismo não se confunde com o fundamentalismo. Logo porque o fundamentalismo é uma reação moderna ao liberalismo teológico. O fundamentalismo se vê como ainda mais racional do que o próprio liberalismo. O fundamentalista, como lembra Karen Armstrong, “coexiste com o liberalismo ou secularismo agressivo numa relação simbiótica e, quando atacado, invariavelmente se torna mais radical e exacerbado”[4]. Armstrong aponta outras diferenças importantes entre as duas correntes:
Enquanto os fundamentalistas desenvolviam sua fé moderna, os pentecostais elaboravam uma visão “pós-moderna” que correspondia a uma rejeição popular da modernidade racional do Iluminismo. Enquanto os fundamentalistas retornavam ao que consideravam a base doutrinal do cristianismo, os pentecostais, que não se interessavam por dogmas, remontavam a um nível ainda mais fundamental: a essência da religiosidade primitiva que ultrapassa as formulações de um credo. Enquanto os fundamentalistas acreditavam na palavra das Escrituras, os pentecostais desdenhavam a linguagem que, como os místicos sempre enfatizaram, não podia expressar adequadamente a Realidade existente além dos conceitos e da razão. Seu discurso religioso não era o logos dos fundamentalistas, mas extrapolava as palavras. Os pentecostais falavam em “línguas”, convencidos de que o Espírito Santo descera sobre eles da mesma forma que descera sobre os apóstolos de Jesus na festa judaica de Pentecostes, quando a presença divina se manifestou em línguas de fogo e conferiu aos apóstolos o dom de falar idiomas estrangeiros.[5]
É uma pena que muitos pentecostais, especialmente a partir da década de 1980, tenham abraçado o fundamentalismo como paradigma de cristandade. O fundamentalismo é, no fundo, uma ameaça ao pentecostalismo assim como o liberalismo teológico. O fundamentalismo é mais sutil porque, aparentemente cultiva a ortodoxia, mas sufoca a fé pentecostal com seu racionalismo de tendência cessacionista e com seu espírito sectário. O pentecostalismo, se sectário for, certamente morrerá, logo porque a crença pentecostal aposta na liberdade do Espírito.
Portanto, o pentecostalismo como uma fé antimoderna supera o liberalismo e o fundamentalismo. Nesse sentido, o pentecostalismo é uma manifestação evangelical antes mesmo do evangelicalismo.
[1] MENZIES, Robert P. Pentecostes: Essa História é a Nossa História. 1 ed. Rio de Janeiro: CPAD, 2016. p 22.
[2] YONG, Amos. Academic Glossolalia? Pentecostal Scholarship, Multi-disciplinarity, and the Science-Religion Conversation. Journal of Pentecostal Theology 14:1 (2005), pp 61-80.
[3] MENZIES, Robert P. Pentecostes: Essa História é a Nossa História. 1 ed. Rio de Janeiro: CPAD, 2016. p 98.
[4] ARMSTRONG, Karen. Em Nome de Deus. 1 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. pos 4072.
[5] ARMSTRONG, Karen. Em Nome de Deus. 1 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. pos 4082.
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